Encontrei-me hoje com o boticário, a quem não via desde a última vez que vira Rufina. “Quem é aquela moça”, lhe perguntei, “que, há coisa de duas semanas, viajou conosco neste bonde? Aquela morenota de olhos grandes e úmidos? Aquela de bonitos dentes? Aquela espigadinha, de branco, a quem você, saltando do carro, deitou uma olhadela xaroposa?”
Fabiano custava-lhe recordar-se. Vincou a testa, cravou os olhos no tejadilho, levou a unha do indicador para entre os incisivos, com a boca aberta.
– “Uma gorda, de cabelo ondulado?”
– “Nada. Não ofenda.”
– “Não me lembro… Espere. Uma alta, de nariz grande?”
– “Já lhe disse que era morena, pequena, engraçada.”
Fabiano agitou-se, como que para sacolejar a caixa das lembranças, atirou uma perna para cima da outra, curvou o busto, agarrou o queixo, carregou o cenho. “Diabo!” De repente, riu-se, deu-me uma tapona no joelho e exclamou:
-“ Já sei! Uma cabrochinha, não é isso?”
Conservei-me calado, mandando em espírito, o idiota do boticário a todos os mil demônios. Aliviado, voltei-me para ele, frio:
– “Desistamos, oh amigo Fabiano José de Figueiredo Alves.”
– “Figueiredo, não; Azevedo.”
– “Ou isso.”
Eu estava convencido de que Fabiano não queria era lembrar-se de Rufina. Impossível que se tivesse realmente esquecido dessa criatura maviosa e rara. Conhecia mulheres como um recenseador: uma gorda, uma alta, uma parda, fora muitas outras que não referiu; e não se recordava da única que valia a pena! Grande ordinário.
Percorremos umas quatro ou cinco quadras em silêncio. Eu nem sequer olhava para a cara de Fabiano. A certa altura, perguntou-me se sabia o nome da moça.
– “Rufina.”
– “Hein?!”
– “Rufina.”
Fabiano olhou para mim e disparou a rir.
– “Já sei, meu caro, já sei!”
– “Mas porque essa risada?”
– “Ah! já sei, meu amigo, já sei. .. Olhe, ela nunca se chamou Rufina. Qual Rufina, nem meia Rufina!… É boa! Ela é Augusta, meu caro amigo. Augusta, entendeu? Rufina… é boa! quiá, quiá, quiá…”
– “Mas.. então, conhece-a?…”
– “Pchê! Há muito tempo. Uma rapariga magra, moreno-mate, com o nariz levemente arrebitado, o queixo saliente, não é isso? Conheço muito. Chama-se Augusta, mora ali para as bandas do cemitério. Boa fazenda coitada!”
Desmoronei. Só ao cabo de longos e dolorosos minutos pude reconstruir-me um pouco, firmar-me um pouco em cima de mim mesmo, e perguntar com voz sumida:
– “Mas, então, esse nome de Rufina?”
– “Muito simples. Bestice do coronel Ferrão, um velho meio pancada – bem pancada, aliás – que tinha a mania de lhe dar esse nome.”
– “E por que?”
– “Por nada, burrice dele. Gostava de trocar os nomes, fazia isso com toda a gente. Tinha um sobrinho, o Bentoca, Bento Felizardo Ferrão, homem respeitável, atacadista ali no centro: chamava-lhe Esmeraldino, até diante dos empregados, na loja. O Viana, era para ele Pascoal, um dia; outro dia, era Bonifácio. A mim, quis-me uma vez batizar por Crispiniano, mas eu, pan! barrei-o logo: Às suas ordens, seu Januário. Danou-se – ora, imagine: danou-se, o bestalhão! – e não falou mais comigo.”
Emudeci. Fabiano continuava, mas já não o entendi daí por diante. A versátil indiferença do boticário chocava-me como uma sem-vergonhice irritante, de sujeito sem alma, sem o senso piedoso e comovido da miséria humana. Mas Fabiano afinal era um bom homem: isto é, um tipo fútil e feroz como soem ser os homens de juízo.
Oh! n’insultez jamais une femme qui tombe!
Mas não é isso, oh poeta, não é isso o pior. O horrendo é esta indiferença, esta sorridente indiferença, esta familiar e brincalhona ferocidade, aérea, difusa, impalpável, com que se considera um ser humano, com que se fala de uma pobre mulher – logo de uma mulher! De uma triste mulher e do seu destino, de uma mulher bela, graciosa e miseranda; de uma mulher que tem toda a massa de que se fazem as mães e os anjos da terra, – e com uns olhos tão grandes, tão úmidos, tão luminosos!
– “Mas porque é que queria saber?” indagou o boticário, depois de uma pausa.
– “À toa, Fabiano.”
– “Pois olhe, é fácil.”
Encarei-o de um modo que devia ter-lhe parecido esquisito, pois calou-se e ficou sério. E não se falou mais nisto.
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AMADEU ATALIBA ARRUDA AMARAL LEITE PENTEADO, poeta, folclorista, filólogo e ensaísta, nasceu em Capivari, SP, em 1875, e faleceu em São Paulo, SP, em 1929. Aos onze anos foi para São Paulo para trabalhar no comércio e estudar. Autodidata, não concluiu o curso secundário. Ingressou no jornalismo, trabalhando no Correio Paulistano e em O Estado de S. Paulo. Em 1922 transferiu-se para o Rio de Janeiro como secretário da Gazeta de Notícias. Do Rio mandava para O Estado de S. Paulo a crônica diária “Bilhetes do Rio”. Voltando a São Paulo exerceu cargos na administração pública. Autodidata, surpreendeu a todos por sua extraordinária erudição, num tempo em que não havia, em São Paulo, as universidades e cursos especializados. Dedicou-se aos estudos folclóricos e, sobretudo, à dialectologia. No Brasil, foi o primeiro a estudar cientificamente um dialeto regional. “Dialeto caipira”, publicado em 1920, escrito à luz da Linguística, estuda o linguajar do caipira paulista da área do vale do rio Paraíba, analisando suas formas e esmiuçando-lhe o vocabulário. Visando à formação dos jovens, assim como Bilac incentivara o serviço militar, Amadeu Amaral procurou divulgar o escotismo, que produziu frutos no país. Sua poesia enquadra-se na fase pós-parnasiana, das duas primeiras décadas do século XX. Como poeta, destacou-se pelo desejo de contribuir, com suas obras, para a elevação de seus semelhantes. Por ocasião do VI centenário da morte de Dante, proferiu, no Teatro Municipal de São Paulo, uma conferência, enfatizando justamente os aspectos de Dante que exaltam a elevação do espírito humano através da Sabedoria. Segundo ocupante da cadeira 15, foi eleito em 1919, na sucessão de Olavo Bilac.
Fontes:
Amadeu Amaral. Memorial de Um Passageiro de Bonde. Disponível em Domínio Público.
Biografia obtida na Academia Brasileira de Letras.
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