11 abril 2025

Asas da Poesia * 8 *


Soneto de
PAULO CEZAR TÓRTORA 
Rio de Janeiro/ RJ

Aurora primaveril

Desabrocha sorrindo a beleza da vida.
Primavera! A estação da alegria e do amor...
Os casais se beijando em total despudor
Ornamentam de afeto a pracinha florida,

E na aurora eis o sol, em dourada investida.
Reverbera no voo do fugaz beija-flor,
A aquarela de tons que nos leva a supor
Ser a felicidade a razão desta vida.

Entre a copa cerrada o hospedeiro arvoredo
Dá aos ninhos, abrigo, em um lúdico enredo
De uma história irreal de mil sonhos dispersos.

E, num canto da praça o poeta, arredio,
Diz ao seu coração que preencha o vazio
E que iluda a tristeza, ao tecer os seus versos.
= = = = = = = = =  

Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba / PR

Sem pressa...
Na tua calmaria
Desacelero meu pensamento 
E como é bom respirar direito
Seguindo o ritmo do teu peito
Trocar a ansiedade
Pela pausa da saciedade 
Sem pressa
Pois tu és 
A fonte dos meus desejos.
= = = = = = = = =  

Trova Premiada de
A. A. DE ASSIS 
Maringá/PR

Promessa do esperto moço
ao bom sogro, ao se casar:
-- Voltaremos para o almoço,
todo dia... e pro jantar!
= = = = = = 

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

O silêncio tem a voz duma saudade
(Cacilda Celso in "Mar Mítico / Mer Mythique", p. 27)

O silêncio tem a voz d’uma saudade
Não bate à porta e entra sem licença
Impondo a sua incômoda presença
E em casa os cantos todos ele invade.

Senta-se à mesa sem urbanidade
Mal entra pousa em tudo, sem detença
Alastra e tudo infecta, qual doença
Que venha só mostrar sua maldade.

Que se vá embora, eu tanto lhe imploro
E que me deixe em paz, eu quase choro
Temendo o que ele quer e, ao menos, fale!

Mas arrogante, mau e prepotente
Aos meus queixumes sempre indiferente
É ele que me exige que eu me cale!
= = = = = = = = = 

Soneto de
DANIEL FERNANDES DA SILVA 
Belo Horizonte/ MG

Alvorecer

Já o Sol, desdobrando o claro manto,
Entorna seus primeiros resplendores,
E as nuvens, matizadas de mil cores,
Vão dando ao firmamento um novo encanto;

Já se escuta entoar um doce canto
O coro dos alígeros cantores,
E do prado regando as lindas flores
Derrama a Aurora seu saudoso pranto;

Já enfim, pela luz do dia acesa,
Vê-se romper a sombra horrenda, escura
Que de luto tingia a natureza.

Só nest' alma, onde a noite sempre dura,
Não se aclaram as sombras da tristeza
Em que me tem envolto a Desventura.
= = = = = = 

Trova Premiada de 
CEZAR DEFILIPPO 
Astolfo Dutra/MG

Não beber mais – garantiu,
promessa perante o santo!
E o bebum diz que cumpriu:
- tô bebendo o mesmo tanto!!!
= = = = = = 

Soneto de
JOSAFÁ SOBREIRA DA SILVA
Jacarepaguá/ RJ

O show da aurora

Eu reparei que as fúlgidas auroras
realçam magistrais policromias
e, em seu prenúncio, no avançar dos dias,
mudam-se as cores, no mover das horas.

Descortinei que, sem longas demoras,
exibe a aurora loucas fantasias,
em que dormitam danças e magias,
depois que os ventos fincam-lhe as esporas.

Eu me encantei a cada dia lindo
e em cada aurora que fosse surgindo,
nesse mover de um frêmito sem fim!

E, acalentado por meus pensamentos,
nas manhãs frias suportava os ventos
vendo esse show que Deus montou pra mim!
= = = = = = = = =  

Poetrix de
RONALDO RIBEIRO JACOBINA
Salvador/BA

Pena capital

Confesso e pena peço.
Senhor Juiz, eu roubo os sonhos
E registro-os em versos.
= = = = = = 

Soneto de
MAURÍCIO CAVALHEIRO 
Pindamonhangaba/ SP

Auroras

Abria a porta quando vinha a aurora
com seus pincéis de singulares cores
pintar a serra, o ribeirão, as flores,
os bois no pasto, o céu e o pé de amora.

Sentia paz ante a visão, e embora
o reumatismo provocasse dores,
se ajoelhava a oferecer louvores
a Deus por mais uma divina hora.

Após a prece ela se punha em pé
e entrava na casinha de sapé
onde morava há muito tempo, só.

Essa senhora de tão longa idade,
que quis morar distante da cidade,
se chama Aurora... Ela é a minha avó.
= = = = = = 

Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

Nos trilhos da ferrovia,
ela, brincando, caminha.
- Até que afinal Maria
resolveu andar na linha...
= = = = = = 

Hino de 
PELOTAS/RS

Salve, salve, ó Pelotas querida
Formosíssima terra do Sul
Tens coberta de glória a vida
Como é lindo o teu céu tão azul.

Não há terra no mundo grandiosa
Que te iguale no esplêndido brilho
De Pelotas a terra formosa
Tenho orgulho também de ser filho.

No teu seio aparece, fulgura
Alegria, instrução e valor
São Gonçalo baixinho murmura
A canção da saudade e do amor.

Salve, salve, ó Pelotas querida
Formosíssima terra do Sul
Tens coberta de glória a vida
Como é lindo o teu céu tão azul.

Hei de sempre Pelotas te amar
E trazer-te na minha memória
Aprendi no teu seio a chorar
E a sorrir nos momentos de glória.

Meus avós te souberam amar
Com orgulho, carinho e respeito
E ao morrer me fizeram herdar
Esse amor que conservo no peito

Salve, salve, ó Pelotas querida
Formosíssima terra do Sul
Tens coberta de glória a vida
Como é lindo o teu céu tão azul
= = = = = = = = =  

Soneto de
PAULO MAURICIO G. SILVA 
Teresópolis/ RJ

Teu violão

Magia dos acordes delicada...
Doce magia... Tons da inspiração...
Lembra o som de uma aurora imaculada.
Louros trigais dourando a imensidão.

Que vibração celeste, sossegada...
Raios de sol abrindo uma estação...
A minha alma flutua, acariciada
pelas notas sublimes de um refrão...

Que melodia suave, bem ritmada...
Afagos de uma brisa perfumada.
Remanso de uma tarde de verão.

Envolve-me a bucólica energia...
Meus nervos embriagados na harmonia
são cordas musicais do teu violão.
= = = = = = = = =  = = = = 

Uma Lengalenga de Portugal
ERA UMA VEZ… 2
 
Era uma vez
Um gato maltês
Tocava piano
Falava francês
Saltou-te às barbas
Não sei que te fez
A dona da casa
Chamava-se Inês
O número da porta era o 33!
Queres que te conte outra vez?
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Minha mãe, case-me cedo,
enquanto sou rapariga,
que o milho sachado tarde
não dá palha, nem espiga.
= = = = = = = = =  

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

A janela entreaberta

O Vento deixou
A janela  entreaberta,
E o Tempo tentou fechá-la,
Mas, não conseguiu
O Vento sorriu, enquanto
A noite trouxe a chuva,
Deslizaram gotas d’água
Em meu rosto,
E em cada gota, senti  uma carícia
Repleta  de Saudade,
Beijos em movimento…
= = = = = =

Júlia Lopes de Almeida (A Caolha)

A caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado, braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho; unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados.

O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito horrível: haviam lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente porejante.

Era essa pinta amarela sobre o fundo denegrido da olheira, era essa destilação incessante de pus que a tornava repulsiva aos olhos de toda gente.

Morava numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa fábrica de alfaiate; ela lavava a roupa para os hospitais e dava conta de todo o serviço da casa inclusive cozinha. O filho, enquanto era pequeno, comia os pobres jantares feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; à proporção que ia crescendo, ia-se a pouco e pouco manifestando na fisionomia a repugnância por essa comida; até que um dia, tendo já um ordenadozinho, declarou à mãe que, por conveniência do negócio, passava a comer fora…

Ela fingiu não perceber a verdade, e resignou-se.

Daquele filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal.

Que lhe importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe pagasse com um beijo todas as amarguras da existência?

Um beijo dele era melhor que um dia de sol, era a suprema carícia para o triste coração de mãe! Mas… os beijos foram escasseando também, com o crescimento do Antonico! Em criança ele apertava-a nos braços e enchia-lhe a cara de beijos; depois, passou a beijá-la só na face direita, aquela onde não havia vestígios de doença; agora, limitava-se a beijar-lhe a mão!

Ela compreendia tudo e calava-se.

O filho não sofria menos.

Quando em criança entrou para a escola pública da freguesia, começaram logo os colegas, que o viam ir e vir com a mãe, a chamá-lo – o filho da caolha.

Aquilo exasperava-o; respondia sempre:

– Eu tenho nome!

Os outros riam e chacoteavam-no; ele se queixava aos mestres, os mestres ralhavam com os discípulos, chegavam mesmo a castigá-los – mas a alcunha pegou. Já não era só na escola que o chamavam assim.

Na rua, muitas vezes, ele ouvia de uma ou outra janela dizerem: o filho da caolha! Lá vai o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha!

Eram as irmãs dos colegas, meninas novas, inocentes e que, instruídas pelos irmãos, feriam o coração do pobre Antonico cada vez que o viam passar!

As quitandeiras, onde iam comprar as goiabas ou as bananas para o lanche, aprenderam depressa a denominá-lo como os outros, e, muitas vezes, afastando os pequenos que se aglomeravam ao redor delas, diziam, estendendo uma mancheia de araçás, com piedade e simpatia:

– Taí, isso é para o filho da caolha!

O Antonico preferia não receber o presente a ouvi-lo acompanhar de tais palavras; tanto mais que os outros, com inveja, rompiam a gritar, cantando em coro, num estribilho já combinado:

– Filho da caolha, filho da caolha!

O Antonico pediu à mãe que não o fosse buscar à escola; e muito vermelho, contou-lhe a causa; sempre que o viam aparecer à porta do colégio os companheiros murmuravam injúrias, piscavam os olhos para o Antonico e faziam caretas de náuseas.

A caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho.

Aos onze anos o Antonico pediu para sair da escola: levava a brigar com os condiscípulos, que o intrigavam e malqueriam. Pediu para entrar para uma oficina de marceneiro. Mas na oficina de marceneiro aprenderam depressa a chamá-lo – o filho da caolha, a humilhá-lo, como no colégio.

Além de tudo, o serviço era pesado e ele começou a ter vertigens e desmaios. Arranjou então um lugar de caixeiro de venda: os seus colegas agruparam-se à porta, insultando-o, e o vendeiro achou prudente mandar o caixeiro embora, tanto que a rapaziada ia-lhe dando cabo do feijão e do arroz expostos à porta nos sacos abertos! Era uma contínua saraivada de cereais sobre o pobre Antonico!

Depois disso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo, deitado pelos cantos, dormindo às moscas, sempre zangado e sempre bocejante! Evitava sair de dia e nunca, mas nunca, acompanhava a mãe; esta poupava-o: tinha medo que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos braços, e por isso nem sequer o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o mais forte, pediu e obteve-lhe, a caolha, um lugar numa oficina de alfaiate. A infeliz mulher contou ao mestre toda a história do filho e suplicou-lhe que não deixasse os aprendizes humilhá-lo; que os fizesse terem caridade!

Antonico encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio da parte dos companheiros; quando o mestre dizia: sr. Antonico, ele percebia um sorriso mal oculto nos lábios dos oficiais; mas pouco a pouco essa suspeita, ou esse sorriso, se foi desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali.

Decorreram alguns anos e chegou a vez de Antonico se apaixonar. Até aí, numa ou outra pretensão de namoro que ele tivera, encontrara sempre uma resistência que o desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes mágoas. Agora, porém, a coisa era diversa: ele amava! Amava como um louco a linda moreninha da esquina fronteira, uma rapariguinha adorável, de olhos negros como veludos e boca fresca como um botão de rosa. O Antonico voltou a ser assíduo em casa e expandia-se mais carinhosamente com a mãe; um dia, em que viu os olhos da morena fixarem os seus, entrou como um louco no quarto da caolha e beijou-a mesmo na face esquerda, num transbordamento de esquecida ternura!

Aquele beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! Tornara a encontrar o seu querido filho! Pôs-se a cantar toda a tarde, e nessa noite, ao adormecer, dizia consigo:

– Sou muito feliz… o meu filho é um anjo!

Entretanto, o Antonico escrevia, num papel fino, a sua declaração de amor à vizinha. No dia seguinte mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se esperar. Durante muitos dias Antonico perdia-se em amarguradas conjecturas.

Ao princípio pensava: – É o pudor.

Depois começou a desconfiar de outra causa; por fim recebeu uma carta em que a bela moreninha confessava consentir em ser sua mulher, se ele se separasse completamente da mãe! Vinham explicações confusas, mal alinhavadas: lembrava a mudança de bairro; ele ali era muito conhecido por filho da caolha, e bem compreendia que ela não se poderia sujeitar a ser alcunhada em breve de – nora da caolha, ou coisa semelhante!

O Antonico chorou! Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha tivesse pensamentos tão práticos!

Depois o seu rancor se voltou para a mãe.

Ela era a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher perturbara a sua infância, quebrara-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante sonho de futuro sumia-se diante dela! Lamentava-se por ter nascido de mulher tão feia, e resolveu procurar meio de separar-se dela; iria considerar-se humilhado continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe, vindo de vez em quando vê-la à noite, furtivamente…

Salvava assim a responsabilidade do protetor e, ao mesmo tempo, consagraria à sua amada a felicidade que lhe devia em troca do seu consentimento e amor…

Passou um dia terrível; à noite, voltando para casa levava o seu projeto e a decisão de o expor à mãe.

A velha, agachada à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo engordurado. O Antonico pensou: “Ao dizer a verdade eu havia de sujeitar minha mulher a viver em companhia de… uma tal criatura?” Estas últimas palavras foram arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha levantou para ele o rosto, e o Antonico, vendo-lhe o pus na face, disse:

– Limpe a cara, mãe…

Ela sumiu a cabeça no avental; ele continuou:

– Afinal, nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!

– Foi uma doença, – respondeu sufocadamente a mãe – é melhor não lembrar isso!

– E é sempre a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê?

– Porque não vale a pena; nada se remedia…

– Bem! Agora escute: trago-lhe uma novidade. O patrão exige que eu vá dormir na vizinhança da loja… já aluguei um quarto; a senhora fica aqui e eu virei todos os dias saber da sua saúde ou se tem necessidade de alguma coisa… É por força maior; não temos remédio senão sujeitar-nos!…

Ele, magrinho, curvado pelo hábito de costurar sobre os joelhos, delgado e amarelo como todos os rapazes criados à sombra das oficinas, onde o trabalho começa cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado naquelas palavras toda a sua energia, e espreitava agora a mãe com um olhar desconfiado e medroso.

A caolha se levantou e, fixando o filho com uma expressão terrível, respondeu com doloroso desdém:

– Embusteiro! O que você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! Que eu também já sinto vergonha de ser mãe de semelhante ingrato!

O rapaz saiu cabisbaixo, humilde, surpreso da atitude que assumira a mãe, até então sempre paciente e cordata; ia com medo, maquinalmente, obedecendo à ordem que tão feroz e imperativamente lhe dera a caolha.

Ela o acompanhou, fechou com estrondo a porta, e vendo-se só, encostou-se cambaleante à parede do corredor e desabafou em soluços.

O Antonico passou uma tarde e uma noite de angústia.

Na manhã seguinte o seu primeiro desejo foi voltar à casa; mas não teve coragem; via o rosto colérico da mãe, faces contraídas, lábios adelgaçados pelo ódio, narinas dilatadas, o olho direito saliente, a penetrar-lhe até o fundo do coração, o olho esquerdo arrepanhado, murcho – murcho e sujo de pus; via a sua atitude altiva, o seu dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe com energia a porta da rua; sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o grande fôlego que ela tomara para dizer as verdadeiras e amargas palavras que lhe atirara no rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar com o perigo de outra semelhante.

Providencialmente, lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha, mas que, entretanto, raramente a procurava.

Foi pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo o que houvera.

A madrinha escutou-o comovida; depois disse:

– Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse a verdade inteira; ela não quis, aí está!

– Que verdade, madrinha?

Encontraram a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho – queria mandar-lhe a roupa limpinha. A infeliz se arrependera das palavras que dissera e tinha passado a noite à janela, esperando que o Antonico voltasse ou passasse apenas… Via o porvir negro e vazio e já se queixava de si! Quando a amiga e o filho entraram, ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria amarraram-lhe toda a ação.

A madrinha do Antonico começou logo:

– O teu rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve aqui ontem e eu aproveito a ocasião para, à tua vista, contar-lhe o que já deverias ter-lhe dito!

– Cala-te! – murmurou com voz apagada a caolha.

– Não me calo! Essa pieguice é que te tem prejudicado! Olha, rapaz! Quem cegou a tua mãe foste tu!

O afilhado tornou-se lívido; e ela concluiu:

– Ah, não tiveste culpa! Eras muito pequeno quando, um dia, ao almoço, levantaste na mãozinha um garfo; ela estava distraída, e antes que eu pudesse evitar a catástrofe, tu o enterraste pelo olho esquerdo! Ainda tenho no ouvido o grito de dor que ela deu!

O Antonico caiu pesadamente de bruços, com um desmaio; a mãe acercou-se rapidamente dele, murmurando trêmula:

– Pobre filho! Vês? Era por isto que eu não queria dizer nada!
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JÚLIA LOPES DE ALMEIDA nasceu em 1862, no Rio de Janeiro. Fixou residência em Campinas, onde aos 19 anos, publicou seu primeiro texto, no jornal A Gazeta de Campinas, por incentivo do pai, que descobrira que a filha escrevia às escondidas. Mais tarde, em 1884, começou a escrever para o periódico O País. Dois anos depois, foi viver em Portugal, onde publicou, em 1887, o seu primeiro livro, Contos infantis, em coautoria com sua irmã, Adelina Lopes Vieira (1850-1923). Nesse país, ela se casou com o escritor português Filinto de Almeida. Em 1888, de volta ao Brasil, publicou, em forma de folhetim, na Tribuna Liberal, seu primeiro romance — Memórias de Marta. Seus textos faziam reflexões, principalmente, acerca da condição da mulher na sociedade da época. A romancista é considerada, por alguns estudiosos, como uma feminista, pois defendia a educação para as mulheres, o divórcio e o direito ao voto, além de refletir sobre o lugar da mulher no campo artístico. Assim, no início do século XX, a escritora experimentou a fama devido a seus textos e suas palestras. Foi uma das fundadoras da Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher. Já em 1925, foi para a França, onde residiu até 1931. Foi a única mulher que participou da fundação da Academia Brasileira de Letras, inaugurada em 1897. No entanto, a escritora não ocupou nenhuma cadeira na instituição, já que muitos de seus colegas foram contra a presença de mulheres nas sessões da ABL. Faleceu em 1934, no Rio de Janeiro. Foi esquecida pela crítica especializada, sendo redescoberta só a partir dos anos 1980. 

Fontes
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. Publicado originalmente em 1903. Disponível em Domínio Público.  
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Contos e Lendas de Portugal (Algarve) As três nuvens

Era uma vez um lavrador muito rico e tinha três filhos: dois, os mais velhos, eram muito estimados pelos seus pais e andavam ricamente vestidos; o mais novo era desprezado. 
 
Tinha o lavrador uma rica propriedade, onde provocava um medo. 

Caseiro que lá se deixava dormir numa noite era encontrado morto no dia seguinte. Vendo o pai que a propriedade estava muito estragada, porque os vizinhos metiam nela os seus gados, resolveu mandar o filho mais novo guardá-la. Aceitou o mancebo a incumbência, pois era muito bom e obediente, mas pediu ao pai que mandasse no dia seguinte buscar o seu cadáver para não permanecer por muito tempo insepulto. 

Despediu-se do pai e dos irmãos e foi para o seu desterro, levando consigo uma cítara, seu instrumento favorito. 

O prédio onde o caseiro costumava dormir ficava no centro da propriedade. O rapaz chegou ali e tirou do prédio uma cama que colocou sobre um parque, de bonita vista, através do prédio. Logo que escureceu foi deitar-se, entretendo-se muito tempo a tocar o seu instrumento. Alta noite adormeceu. Tinha pegado no sono, sentiu-se afogado sob um grande peso; sentou-se na cama, pegou na cítara e disse em voz alta: 

 – Que peso é o que sinto? Olhem que parto a cabeça seja a quem  for. 

 E pôs-se a fazer um grande sarilho com a cítara, como se fora um alfange. 

 Então ouviu o mancebo uma voz: 

– Não me mates, dizia a voz, porque te faço bem. Eu sou a nuvem negra, e, quando tiveres necessidade de alguma coisa, chama por mim. 

No dia seguinte ergueu-se ele da cama e dirigiu-se para casa, onde era esperado por quatro homens com uma tumba para o levar ao cemitério. 

– Podem retirar-se: ainda não foi desta vez, disse o mancebo. 

 Na noite seguinte repetiu-se a mesma cena com a diferença da resposta: 

– Não me mates: eu sou a nuvem parda e, quando queiras alguma coisa, chama por mim. 

 Na terceira noite, e depois da mesma cena das noites antecedentes, ouviu: 

– Não me mates: sou a nuvem branca. Sempre que te seja preciso, chama por mim. Eu e as minhas irmãs estávamos aqui encantadas, foste tu que nos desencantaste com os maviosos sons do teu instrumento. 

E a nuvem branca desapareceu como tinham desaparecido as outras. 

Conservou-se o mancebo por algum tempo na propriedade, sendo raríssimas vezes visitado pelo pai e isso no mero intuito de examinar como o filho a administrava. 

Um dia teve saudades da família e foi visitá-la. Logo que entrou na casa paterna viu muitos alfaiates ocupados em talhar e fazer riquíssimos fatos de homem; soube então que o rei mandara anunciar que casaria com a princesa o cavalheiro que se saísse vitorioso de três torneios seguidos. 

 Entretida a família nos arranjos dos dois irmãos, que aspiravam à mão da princesa, nenhum caso fizeram do irmão mais novo. Este demorou-se pouco tempo na casa dos seus e retirou-se para a propriedade. 

Nessa noite pensou que ele poderia entrar nos torneios, e quando foram marcados os dias para as lutas já tinha formada a intenção de lá se apresentar. 

Na manhã do dia do primeiro torneio disse o mancebo: – Valha-me a nuvem preta. 

Apareceu logo uma nuvem e dela saiu uma jovem. – O que me queres? perguntou. 

– Entrar no torneio e sair vencedor. 

A jovem ergueu uma pequena vara, proferiu algumas palavras, e apareceu um cavalo negro, trazendo pequena mala, onde vinham riquíssimas vestes e armas de cavaleiro da mesma cor do cavalo. 

O mancebo vestiu-se, empunhou as armas, montou no cavalo e entrou no torneio, saindo vencedor. Logo que saiu da cidade desapareceram o cavalo, as vestes e as armas. 

No dia seguinte disse: 

– Valha-me a nuvem parda. 

Apareceu outra nuvem, de onde saiu uma jovem que perguntou ao mancebo o que queria. 

 – Entrar no torneio e sair vencedor. 

E sucedeu como no dia antecedente. Quando ele entrou na praça percebeu que a princesa o atendia com especial agrado. Ainda outra vez saiu vencedor, retirando-se logo para fora da cidade e desaparecendo o cavalo, as vestes e as armas. 

No terceiro dia invocou a nuvem branca e entrou no torneio montado em cavalo branco e com armas brancas bordadas a ouro. Saiu-se vencedor, e então viu-se cercado das pessoas da corte que o convidaram a ir à presença do rei. O mancebo foi. 

Na presença do rei e da princesa, tirou a viseira. E o rei e a princesa agradaram-se do jovem e logo foi ali resolvido o seu casamento. 

Os dois irmãos do mancebo conservavam-se a certa distância e, quando viram que estava resolvido o casamento com o seu irmão, tiveram grande desespero. Um deles lançou-se da janela à rua, morrendo despedaçado, o outro atravessou-se no próprio alfange. 

Houve grandes festas no palácio e em todo o reino por ocasião daquele casamento. 

Fontes:
Xavier Ataíde de Oliveira. Contos tradicionais do Algarve. edição Vega. Disponível no Estudio Raposa.
http://www.truca.pt/raposa_textos/historia_84_tres_nuvens.html
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10 abril 2025

Asas da Poesia * 7 *


Poema de
CLARISSE CRISTAL
Balneário Camboriú/SC

Algaravia

Encontrei as chaves perdidas de papai
Estavam lá, estáticas e bem seguras
 Na algibeira interna
 Do meu sobretudo negro  

Agora sou eu que não me encontro mais 
Acordo pelo amanhã
E contíguo a mim
Uma angústia
Infinda
De ser uma outra pessoa
Alheia do que fui até a pouco

Desaprendi
 A compor em versos com poesia 
Desaprendi a contemplar o vago

E o vazio inquebrantável
Do noturno silêncio oblíquo
Em noite perdida no campo santo

Encontrei as outrora chaves perdidas de papai
Agora a luz do dia faina
O meu corpo oco e insípido
Inerte em duas rodas velozes

Encontrei as chaves perdidas de papai
E minha nova paixão
Surge sempre benfazeja
Ao final do expediente
= = = = = = 

Poema de
FABIANE BRAGA LIMA
Rio Claro/ SP

Alma de poeta

Meus versos se rasgaram com o tempo,
As minhas mãos calejadas sangraram,
Ao escrever infindos poemas.
Hoje sou o grito intenso das madrugadas,
Sou o silêncio árduo em forma de rimas,
Sou a alma do poeta que derrama lágrimas...
A cada lágrima, nasce uma nova poesia...!
= = = = = = 

Poema de
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ ES

Amada

Que bom que acreditastes
Na minha volta, paixão
Se magoei teu coração
Perdoa, eis-me aqui
Acabou tua infelicidade
Sou tua Felicidade: 
voltei pra ficar.
= = = = = = = = = 

Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Já pronta e de vela içada
tremulando de ansiedade,
vai para o mar a jangada
carregada de saudade!
= = = = = = 

Poema de
SOUSÂNDRADE
Guimarães/ MA 1833 – 1902, São Luís/ MA

Inverno 

Salve! felicidade melancólica,
Doce estação da sombra e dos amores-
Eu amo o inverno do equador brilhante!
A terra me parece mais sensível.
Aqui as virgens não se despem negras
À voz do outono desdenhoso e déspota,
Ai delas fossem irmãs, filhas dos homens!
Aqui dos montes não nos foge o trono
Dessas aves perdidas, nem do prado
Desaparece a flor. A cobra mansa,
Cor d’azougue, tardia, umbrosa e dútil,
No marfim do caminho endurecido
Serpenteia, como onda de cabelos

Da formosura no ombro. À noite a lua,
Qual minha amante d’inocente riso,
Co’a face branca assenta-se nas palmas
Da montanha estendendo os seus candores,
Mãe da poesia, solitária, errante:
O sol nem queima o céu como os desertos,
Simpáticas manhãs é sempre o dia.

Geme às canções d’aldeia apaixonadas
Mui saudoso violão: as vozes cantam
Com náutico e celeste modulado.
Chama às tácitas asas o silêncio
Ao repouso, aos amores: as torrentes
Prolongam uma saudade que medita:
Vaga contemplação descora um pouco
O adolescente e o velho: doce e triste
Eu vejo o meu sentir a natureza
Respirar do equador, selvagem bela
De olhos alados de viver, à sombra
Adormecendo d’árvore espaçosa.
= = = = = = 

Poema de 
EDITH CHACON THEODORO
São Paulo/SP

Ler

Ler.
Ler sempre.
Ler muito.
Ler “quase tudo”.
Ler com os olhos, os ouvidos, com o tato, 
pelos poros e demais sentidos.
Ler com razão e sensibilidade.
Ler desejos, o tempo, 
o som do silêncio e do vento.
Ler imagens, paisagens, viagens.
Ler verdades e mentiras.
Ler o fracasso, o sucesso, o ilegível, 
o impensável, as entrelinhas.
Ler na escola, em casa, no campo, 
na estrada, em qualquer lugar.
Ler a vida e a morte.
Saber ser leitor, 
tendo o direito de saber ler.
Ler simplesmente ler.
= = = = = = 

Hino de
INDIAROBA/ SE

Era começo do século XVIII
Catecúmenos vieram aqui se instalar
Em incursão entre os bravos silvícolas
Para a antiga "Feira da Ilha" habitar

Sobre as águas do rio que nos banha
Os imigrantes conseguiram aqui chegar
E entre os quais vieram ilustres jesuítas
Com a missão de evangelizar.

Abençoada seja Indiaroba
Recanto amado, hospitaleiro e sacrossanto
Iluminada seja Indiaroba
com a luz do Divino Espírito Santo

Disputaram os dois fortes caciques
capitães-mor: José de Oliveira Campos
e Manoel Francisco da Cruz e Lima
pela posse da Vila do Espírito Santo.

Se seria de Sergipe ou da Bahia,
foi decidido através Decreto-Lei
sendo, pois, a divisa o Rio Real da Praia
Ganhou a posse Sergipe Del-Rei!
= = = = = = 

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Não lamento o meu passado,
nem mesmo o tempo me ofende.
Viver é um aprendizado
quem mais vive mais aprende.
= = = = = = 

Poema de
RAINER MARIA RILKE
Praga/ Tchecoslováquia (1875 – 1926)

O homem que lê

Eu lia há muito. Desde que esta tarde
com o seu ruído de chuva chegou às janelas.
Abstraí-me do vento lá fora:
o meu livro era difícil.
Olhei as suas páginas como rostos
que se ensombram pela profunda reflexão
e em redor da minha leitura parava o tempo. —
De repente sobre as páginas lançou-se uma luz
e em vez da tímida confusão de palavras
estava: tarde, tarde… em todas elas.
Não olho ainda para fora, mas rasgam-se já
as longas linhas, e as palavras rolam
dos seus fios, para onde elas querem.
Então sei: sobre os jardins
transbordantes, radiantes, abriram-se os céus;
o sol deve ter surgido de novo. —
E agora cai a noite de Verão, até onde a vista alcança:
o que está disperso ordena-se em poucos grupos,
obscuramente, pelos longos caminhos vão pessoas
e estranhamente longe, como se significasse algo mais,
ouve-se o pouco que ainda acontece.

E quando agora levantar os olhos deste livro,
nada será estranho, tudo grande.
Aí fora existe o que vivo dentro de mim
e aqui e mais além nada tem fronteiras;
apenas me entreteço mais ainda com ele
quando o meu olhar se adapta às coisas
e à grave simplicidade das multidões, —
então a terra cresce acima de si mesma.
E parece que abarca todo o céu:
a primeira estrela é como a última casa.
= = = = = = = = =

Asas da Poesia * 46 *

Poema de LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE Pinhalão/PR Tuas Mãos "Tua mão esquerda está sob minha cabeça, e tua direita abraça-me " (Ct.8....