04 julho 2025

Asas da Poesia * 46 *



Poema de
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE
Pinhalão/PR

Tuas Mãos

"Tua mão esquerda está sob minha cabeça,
e tua direita abraça-me " (Ct.8.3)

Ó suaves mãos, mãos afeiçoadas,
De puros gestos, carinhosas;
Ó níveas mãos, mãos abençoadas,
Que coisa as fez assim formosas?

Macia palma, aveludada,
O dorso - cheio de expressão...
O que será tem de encantada
A placidez da tua mão?

E brandamente com ternura,
Amigas mãos, quentes, me vêm;
Não é paixão, não é loucura,
Mas as tuas mãos - o que elas têm?

Volvem pra mim alegremente,
Como se, então, me dessem um beijo;
E no tanger mais complacente,
Com grande afeto eu sempre as vejo.

Mesmo de frágil compleição,
Fazem-me forte qual gigante;
Quanta magia em cada mão!
Por elas só, vou sempre avante.

Na branca palma da tua mão,
Soletro as sílabas da vida;
Eu vejo um "M" com paixão
- Centro do amor é a letra lida.
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Trova de 

CÉSAR SOVINSKI
(César Augusto Ribas Sovinski)
Curitiba/PR

O mentiroso sultão
com seu harém de donzelas.
— Durmo com todas, irmão.
— Só dorme – diz uma delas.
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Poema de
MARIO QUINTANA
Alegrete/RS, 1906 – 1994, Porto Alegre/RS

Data e dedicatória

Teus poemas, não os dates nunca... Um poema
Não pertence ao Tempo... Em seu país estranho
Se existe hora, é sempre a hora extrema
Quando o Anjo Azrael nos estende ao sedento
Lábio o cálice inextinguível...
O que tu fazes hoje é o mesmo poema
Que fizeste em menino,
É o mesmo que,
Depois que tu te fores,
Alguém lerá baixinho e comovidamente,
A vivê-lo de novo...
A esse alguém,
Que talvez nem tenha ainda nascido,
Dedica, pois, teus poemas,
Não os date, porém:
As almas não entendem disso…
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Aldravia de
LUIZ GONDIM
Rio de Janeiro/RJ

quero
vestir
tua
noite
despindo
censuras
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Soneto de
EMÍLIO DE MENESES
(Emílio Nunes Correia de Meneses
Curitiba/PR, 1866 – 1918, Rio de Janeiro/RJ

Numa lápide

Qual se teu filho fora, eu me acabrunho
E, de mágoa, a falar-te mal me atrevo.
Aceita, entanto, o humilde testemunho
De quanto foste meu sagrado enlevo.

Fosse-me dado, de cinzel em punho,
Talhar o liso mármore em relevo,
E eu daria da pedra o eterno cunho
Às estrofes que em pranto e sangue escrevo:

Sei que não cabem nestes sons dispersos
O pranto em que esta angústia não se acalma,
E o sangue em que tais sons morrem imersos.

Não cabe dentro de votiva palma
Nem na estreiteza de mesquinhos versos
O infinito de dor que tenho na alma.
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Trova de
JERSON LIMA DE BRITO 
Porto Velho/RO

Não tema sua jornada
se o céu estiver cinzento
que às vezes a trovoada
faz parte do ensinamento!
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Poema de
JOSÉ CARLOS MOUTINHO
Maia/Portugal

Murmúrios distantes

Sufocam-me os dias do meu estar,
Aperta-se-me o peito angustiado pelo nada;
Solta-se-me um grito estrangulado
Que voa, pelos vales da esperança,
E é a tua voz, que no eco, me responde,
Palavras de amor e arrependimento;
Mas estão longe, muito longe,
E chegam-me num murmúrio…
Perdem-se na distância dos erros cometidos
E momentos sofridos,
Que nem os místicos luares sararam;
Tampouco as estrelas que nos iluminavam,
Te mostraram a luz do nosso caminho;
Desperdiçaste a felicidade que se te oferecia,
De um coração aberto e uma alma transbordante,
De alegria constante!
Recusaste o sol que aqueceria a tua frieza,
Renegaste até os perfumes que a natureza,
Te colocou na floreira da tua vida,
Na forma de belas rosas vermelhas,
Oferecidas em instantes de êxtase

Agora o Universo gira num desatino,
Descontrolado pela razão da inconsciência,
Que me leva a uma irônica saudade,
Que não faz mais sentido,
Metamorfoseada por outras razões.
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Quadra popular
AUTOR ANÔNIMO

Tristes ais, negras saudades,
não me mates de repente,
que para matar só basta
o meu bem viver ausente.
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Soneto de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/Portugal

Sinto o sangue gelar-se-me nas veias
(José Barreto, in "Cânticos de Paixão e Outras Cores", p, 24)

Sinto o sangue gelar-se-me nas veias
Quando no peito morre uma esperança
Ou se solta um cabelo de uma trança
Onde o ouro brilhava sem ter peias;

E quando a luz que havia nas ideias
Se extingue sem deixar qualquer herança
Que no futuro seja uma lembrança
Dos povos que cantaram epopeias.

E o meu corpo minado pelo frio
Ganha a dureza gélida de um rio
A que os polos dão alma de glaciar.

Sou branca massa de água deslizando
Que sobe um mar de mágoa abominando
Onde eu não sou capaz de me afogar.
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Trova de
JOSÉ FELDMAN
Floresta/PR

O que me deixa grilado,
é nunca saber jamais,
com dois amigos ao lado,
qual deles que mente mais.
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Soneto Decassílabo Heroico de
ODAIR CABEÇA DE POETA
Fortaleza/CE

Soneto à mulher

Mulher, te vejo pura, qual criança
Revelando o amor todos os dias,
E ao contemplar estrelas, que alegria!
Eu sinto a tua essência, da esperança.

Mulher és, mais que tudo, temperança,
Ao compartilhar dores com os amigos,
És vício bom, um drible no perigo,
És emoção, és riso, boas lembranças.

O amor, em sua estrutura, é o pilar...
Uma carícia amiga, um despertar
Uma alma, prenhe de paixão, feliz,

E em seu espírito livre, sem ardis
Em meio a tantas pétalas, uma flor
És coração que explode em amor!
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Triverso de
ÁLVARO POSSELT
Curitiba/PR

A vida não tem fim
Entre túmulos e flores
uma caveira acenou pra mim
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Soneto de
MARIA EUGÊNIA CELSO 
(Maria Eugênia Celso Carneiro de Mendonça)
São João del Rey/MG, 1890 – 1963, Rio de Janeiro/RJ

Mudança

Li no jornal teu casamento… Um instante
Sinceramente a humana espécie odiei,
Do mundo o horror se me tornou flagrante
E do planeta desertar sonhei.

Veio depois a reflexão calmante…
Do esquecimento obedecendo à lei
– De ti se fez me coração distante,
Com a vida e os homens me reconciliei.

Passou-se um mês… Hoje encontrei-te… O espanto
Fez-me um segundo emudecer, no entanto
Minh’alma logo te reconheceu.

Eras tu mesmo… mas diminuído,
Diverso, feio, gordo, envelhecido.
Mudaste acaso ou mudaria eu?
= = = = = = = = =  

Trova de
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo/SP

O mentiroso pensou
ter enganado a donzela...
Por interesse casou,
mas quem o enganou, foi ela!
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Poema de
MARIA EVAN GOMES BESSA
Fortaleza/CE

Praia de Iracema
 
Águas revoltas na ponte metálica
E o mar de um verde estonteante
Brinca com o vento em ondas
Que agitam turistas e visitantes.
 
A linguagem do mar é envolvente
Seduz a todos com seu simbolismo
E se traduz em falas misteriosas
Que inspiram ou provocam imobilismo.
 
Quantas histórias e vidas se passaram
Naquela praia de mares bravios,
Onde os poetas e boêmios viram
Guerreiros deslizarem em seus navios.
 
E a índia Iracema a correr na areia
Branca, esbelta, de pés descalços,
À espera do Guerreiro vive ainda
No inconsciente coletivo do povo.
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Epigrama de
VICTOR CARUSO
Campinas/SP

A um matemático

Jaz aqui um matemático.
Se dele queres saber
Pede à história que te diga:
Sendo do cálculo amador fanático
Teve para morrer um meio prático
E resolveu morrer
De cálculos na bexiga…
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Glosa de
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/CE

MOTE:
Tantas noites mal dormidas:
tantos dias mal passados,
tantas lágrimas vertidas,
por amores fracassados!
JOSÉ FELDMAN 
Floresta/PR

GLOSA:
Tantas noites mal dormidas:
só insônia e pesadelos;
nestas horas tão sofridas
sinto a falta de seus zelos!

Não sei se vou suportar
tantos dias mal passados,
sem um dia eu derramar
soluços desesperados!

Dos meus olhos, incontidas,
fruto da saudade, são
tantas lágrimas vertidas,
que secou meu coração!

Nas noites, sem ter o encanto
de te ter em meus brocados,
vou chorar meu desencanto
por amores fracassados!
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Trova de
A. A. DE ASSIS
(Antonio Augusto de Assis)
Maringá/PR

O céu manda a trovoada
avisar que a chuva vem.
– Venha logo... e, abençoada,
traga a fartura também!
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Soneto Alexandrino de
THALMA TAVARES
(Vicente Liles de Araújo Pereira)
São Simão/SP

A um jovem suicida
 
Pela porta entreaberta o velho pai assoma.
Olha triste, em silêncio, a família e a casa.
E em soluços explode a dor que ele não doma, 
o mal contido pranto, a lágrima que abrasa.

A todos, de um só golpe, o sofrimento arrasa.
Inconsolável mágoa a casa inteira toma.
Parece que a tristeza, enfim, deitou sua asa
sobre um lar onde a paz era único idioma.

Tempos depois passou a dor e o desconforto.
Mas do pai, que abraçou um dia o filho morto,
como eterno castigo a dor não se apartou.

Ficou-lhe na lembrança – e pela vida inteira – 
a débil voz do filho e a queixa derradeira:
- Estou morrendo, pai!... A droga me matou! 
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Trova de
EVA YANNI GARCIA
Caicó/RN

Desponta sereno o dia,
e o meu sonho, sem demora,
enche o mundo de poesia
ao romper da linda aurora!
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Poema de
ELISA ALDERANI
Ribeirão Preto/SP

Tempos da infância

No tempo de minha infância,
longe da cidade vivia.
Minha casinha era pobre e pequena,
no verde dos campos sumia...
Milho e pastagem eram exuberantes.
Tinha uma estrada de terra batida,
onde sempre passavam os carros
puxados de dois bois, ofegantes.
Para ir até a escola,
talvez uma carona pegava.
Achava demais divertido
o balanço das rodas fazendo ruído.
Na volta, já de tardezinha
a mãe mandava buscar leite de vaca
no camponês que morava
na casa pequena, ao lado da minha.
Eu esperava ansiosa,
olhando curiosa a vaca leiteira,
que com os pés amarados
mexia o rabo, nervosa.
Maria, a camponesa,
usava saia preta e comprida.
Sentada numa cadeirinha,
com muito cuidado mungia.
Depois, o balde levava
e, devagar o leite ela coava.
Enchia uma xícara,
ainda lembro que era de cor verde,
e com carinho me oferecia.
O cálido leite quentinho
com a espuminha por cima
tinha sabor de carinho, e
matava a fome que tinha!
= = = = = = = = =  

Poetrix de
SUELY BRAGA
Osório/RS

O vento

Baila o vento.
Sacode as cabeleiras das árvores.
Os pássaros recolhem-se do relento.
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Soneto de
RITA MOUTINHO
Rio de Janeiro/RJ

Soneto do provérbio

Depois da temporada de enlevo,
retorno à condição de submarino.
Ficarei mergulhada, sem relevo,
embalando o silêncio de ser sino.

Sinos só soam em horas muito raras.
São, é certo, instrumentos solitários,
mas plenos, mais plenos que as claras
orquestras que iluminam os cenários.

No recato da sombra, vou vivendo,
sem saber quando o lume se desnubla,
diversa de Penélope, escrevendo.

Sua grande atriz brilha no mundo,
nos bastidores, sou a chã que dubla,
mas, no escuro, o cintilo é mais profundo. 
= = = = = = = = =  

Trova de
CLÁUDIO DE CÁPUA
São Paulo/SP, 1945 – 2021, Santos/SP

Eu adoro essas quadrinhas,
têm métrica, rima e tema...
A trova, com quatro linhas,
tem a amplidão de um poema.
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Poema de
JAIME VIEIRA
Maringá/PR

Curvatura

As estrelas se derramam no céu
mesmo quando, sob o peso dos anos,
não se olha mais para cima,
em busca de uma ilusão…

Envelhecidos os olhos,
a limitação humana
com as costas encurvadas
procura em poças d´água
o brilho das estrelas
refletidas no chão…
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Trova de
ANTONIO JURACI SIQUEIRA
Belém/PA

O homem sofre ante os impulsos
das religiões e das ciências
pois pior que algemar pulsos,
é agrilhoar consciências!…
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Soneto de
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Doces lembranças

A rua principal era uma antiga estrada
Que conduzia ao Rio as produções paulistas.
E em caminhões de carga os xucros motoristas
De quando em vez passavam em louca disparada.

Em meio ao poeirão e à falta de outras pistas,
A molecada armava ali sua “pelada”...
E nos degraus de pedra à beira da calçada,
Mocinhas fomentavam as poses dos ciclistas...

A rua-estrada era o centro da cidade!
Pois nela se alinhavam a venda, o bar, a Igreja,
A Santa Casa, a escola, o clube e... na verdade,

Casebres onde aranhas punham suas teias...
Mas seu saudoso “footing”... Por mais não seja,
Me corta o coração por ter deixado Areias...
= = = = = = = = =  

Olivaldo Júnior (Uma Estrela)


A palavra não é minha. Mas a ideia me doma. Então, escrevo. 
–––––-

Era uma vez uma estrela. Mas não era uma estrela como outra qualquer que está no céu. Era uma estrela da terra. Tinha caído do céu havia um tempo, mas ainda não estava acostumada com a vida terrestre. Estrela não se acostuma muito fácil com a vida que a gente leva. Vales, selvas e vilas: mas a estrela, caída no meio de um monte de estrume, não brilhava, nem nada. Seu DNA não era dínamo para esgarçar as chinelas pela estrada. A estrela não andava. Portanto, foi preciso esperar. Um dia, sem que esperasse, quase que uma cobra a comeu. Mas, por sorte, passou um carro velho que, espantando o bicho, fez a estrela feliz. O tempo diria se ela sobreviveria ao seu destino. O ninho de uma estrela estava sendo um monturo.

Um dia, sem que a estrela tivesse mais por que esperar, passou uma libélula que, se esgueirando no esterco, tocou a pele da estrela, sujinha de estrume de vaca brava, sem toque, nem truque de excelsa condição. A vida ensina. A mina de estrelas tinha deixado cair uma das suas. As estrelas também caem. Morna, a estrela grudou no inseto transparente que lhe a sobrevinha, incauto. Atrelada àquela libélula, pôde chegar à cidade e, ao passarem por um poste de iluminação da via pública, saltou de banda das frágeis costas da inocente a salvá-la. Salvadores, muitas vezes, são ingênuos. Socorro também surge sem querer. Bem que alguém podia ser livre.

A estrela estava no alto de um poste de rua, tentando se equilibrar, sondando o terreno. Não estava mais num monte de estrume, sem eira nem beira que a fizesse ser alvo de cobras, nem de aves de rapina. Estava “por cima”. Não estava no céu, mas chegaria lá. Quem não duvida, pode bem alcançar.

A noite avançava. Fazia um tempo de chuva. O vento soprava. A luz daquele poste estava quebrada. Passou um vento mais forte, que empurrou a estrelinha para cima do velho bocal do novo poste. Assim, a luz voltou.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Olivaldo Júnior nasceu em Aguaí/SP, mas se radicou em Mogi Guaçu/SP desde menino. Formado em Letras e Radialismo, compõe poemas, contos, músicas e outros, com diversas classificações em Concursos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor em 16. 01. 2013.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

José de Alencar (Ao correr da pena) Um Sermão de Monte Alverne


O tempo serenou; as nuvens abriram-se, e deixam ver a espaços uma pequena nesga de céu azul, por onde passa algum raio de sol desmaiado, que, ainda como que entorpecido com o frio e com a umidade da chuva, vem espreguiçar-se indolentemente sobre as alvas pedras das calçadas.

Aproveitemos a estiada da manhã, e vamos, como os outros, acompanhando a devota romaria, assistir à festividade de São Pedro de Alcântara, que se celebra na Capela Imperial!

A igreja ressumbra a severa e impotente majestade dos templos católicos. Em face dessas grandes sombras que se projetam pelas naves, da luz fraca e vacilante dos círios lutando com a claridade do sai que penetra pelas altas abóbadas, do silêncio e das pompas solenes de uma religião verdadeira, sente-se o espírito tomado de um grave recolhimento.

Perdido no esvão de uma nave escura, ignorado de todos e dos meus próprios amigos, que talvez condenavam sem remissão um indiferentismo imperdoável, assisti com o espírito do verdadeiro cristão a esta festa religiosa, que apresentava o que quer seja fora do comum.

Sob o aspecto contido e reservado daquele numeroso concurso, elevando-se gradualmente do mais humilde crente até às últimas sumidades da hierarquia social, transpareciam os assomos de uma curiosidade sôfrega e de uma ansiedade mal reprimida. Qual seria a causa poderosa que perturbava assim a gravidade da oração? Que pensamento podia assim distrair o espírito dos cismas e dos enlevos da religião? Não era de certo um pensamento profano, nem uma causa estranha que animava aquele sentimento. Ao contrário: neste templo que a religião enchia com todo o vigor de suas imagens e toda a poesia de seus mitos, neste recinto em que as luzes, o silêncio e as sombras, as galas e a música representavam todas as expressões do sentimento, só faltava a palavra, mas a palavra do Evangelho, a palavra de uma inspiração sublime e divina, a palavra que cai do céu sobre o coração como um eco da voz de Deus, e que refrange aos lábios para poder ser compreendida pela linguagem dos homens.

Era isto o que todos esperavam. Os olhos se voltavam para o púlpito onde havia pregado Sampaio, S. Carlos e Januário; e pareciam evocar dos seus túmulos aquelas sombras ilustres para virem contemplar um dia de sua vida, uma reminiscência de suas passadas glórias.

Deixai que emudeçam as orações, que se calem os sons da música religiosa, e que os últimos ecos dos cânticos sagrados se vão perder pelo fundo dos erguidos corredores ou pelas frestas arrendadas das tribunas.

Cessaram de todo as orações. Recresce a expectativa e a ansiedade; mas cada um se retrai na mudez da concentração. Os gestos se reprimem, contêm-se as respirações anelantes. O silêncio vai descendo frouxa e lentamente do alto das abóbadas ao longo das paredes, e sepulta de repente o vasto âmbito do templo.

Chegou o momento. Todos os olhos estão fixos, todos os espíritos atentos.

No vão escuro da estreita arcada do púlpito assomou um vulto. É um velho cego, quebrado pelos anos, vergado pela idade. Nessa bela cabeça quase calva e encanecida pousa-lhe o espírito da religião sob a tríplice auréola da inteligência, da velhice e da desgraça.

O rosto pálido e emagrecido cobre-se desse vago, dessa oscilação do homem que caminha nas trevas. Entre as mangas do burel de seu hábito de franciscano cruzam-se os braços nus e descarnados.

Ajoelhou. Curvou a cabeça sobre a borda do púlpito, e, revolvendo as cinzas de um longo passado, murmurou uma oração, um mistério entre ele e Deus.

Que há em tudo isto que desse causa à tamanha expectativa? Não se encontra a cada momento um velho, a quem o claustro sequestrou do mundo, a quem a cegueira privou da luz dos olhos? Não há aí tanta inteligência que um voto encerra numa célula, e que a desgraça sepulta nas trevas?

É verdade. Mas deixai que termine aquela rápida oração; esperai um momento… um segundo… ei-lo!

O velho ergueu a cabeça; alçou o porte; a sua fisionomia animou-se. O braço descarnado abriu um gesto incisivo; os lábios, quebrantando o silêncio de vinte anos, lançaram aquela palavra sonora, que encheu o recinto, e que foi acordar os ecos adormecidos de outros tempos.

Fr. Francisco de Monte Alverne pregava! Já não era um velho cego, que a desgraça e a religião mandava respeitar. Era o orador brilhante, o pregador sagrado, que impunha a admiração com a sua eloquência viva e animada, cheia de grandes pensamentos e de imagens soberbas.

Desde este momento o que foi aquele rasgo de eloquência, não é possível exprimi-lo, nem sei dize-lo. A entonação grave de sua voz, a expressão nobre do gesto enérgico a copiar a sua frase eloquente, arrebatava; e levado pela força e veemência daquela palavra vigorosa, o espírito, transpondo a distância e o tempo, julgava-se nos desertos de Said e da Tebaida, entre os rochedos alcantilados e as vastas sáfaras de areia, presenciando todas as austeridades da solidão.

De repente, em dois terços, com uma palavra, com um gesto, muda-se o quadro; e como que a alma se perde naquelas vastas e sombrias abóbadas do Mosteiro de São Justo, para ver com assombro Pedro de Alcântara em face de Carlos V, o santo em face da grandeza decaída.

Aqueles que em outros tempos ouviram Monte Alverne, e que podem comparar as duas épocas de sua vida cortada por uma longa reclusão, confessam que todas as suas reminiscências dos tempos passados, apesar do prestígio da memória, cederam a esse triunfo da eloquência.

Entre as quatro paredes de uma célula estreita, privado da luz, é natural que o pensamento se tenha acrisolado; e que a inteligência, cedendo por muito tempo a uma força poderosa de concentração, se preparasse para essas expansões brilhantes.

O digno professor de eloquência do Colégio de Pedro II; desejando dar aos seus discípulos uma lição de prática de oratória, assistiu com eles, e acompanhado do respeitável diretor daquele estabelecimento, ao belo discurso de Monte Alverne. Não me animo a dizer mais sobre um assunto magnífico, porém esgotado por uma dessas penas que com dois traços esboçam um quadro, como a palavra de Monte Alverne com um gesto e uma frase.

Contudo, se este descuido de escritor carece de desculpas, parece-me que tenho uma muito valiosa na importância do fato que preocupou os espíritos durante os últimos dias da semana, e deu tema a todas as conversações.

Parece, porém, que a chuva só quis dar tempo a que a cidade do Rio de Janeiro pudesse ouvir o ilustre pregador, sem que o rumor das goteiras perturbasse o silêncio da igreja.

À tarde o tempo anuviou-se, e a água caía a jorros. Entretanto isto não impediu que a alta sociedade e todas as notabilidades políticas e comerciais, em trajes funerários, concorressem ao enterro de uma senhora virtuosa, estimada por quantos a tratavam, conhecida pelos pobres e pelas casas pias.

A Sra. Baronesa do Rio Bonito contava muitas afeições, não só pelas suas virtudes, como pela estimação geral de que gozam seus filhos. O grande concurso de carros que acompanharam o seu préstito fúnebre em uma tarde desabrida é o mais solene testemunho desse fato.

Entre as pessoas que carregaram o seu caixão notaram-se o Sr. Presidente do Conselho, o Sr. Ministro do Império e alguns Diretores do Banco do Brasil. É o apanágio da virtude, e o único consolo da morte. Ante os despojos exânimes de uma alma bem formada se inclinam sem humilhar-se todas as grandezas da terra.

Esses dois fatos, causa de sentimentos opostos, enchem quase toda a semana. Desde pela manhã até a noite a chuva caía com poucas intermitências, e parecia ter destinado aqueles dias para as solenidades e os pensamentos religiosos.

Apesar da esterilidade e sensaboria que produz sempre esse tempo numa cidade de costumes como os nossos, apesar dos dissabores dos namorados privados dos devaneios da tarde, e dos ataques de nervos das moças delicadas, os homens previdentes não deixavam de estimar essas descargas de eletricidade, e essas pancadas d’água, que depuram e refrescam a atmosfera.

Na opinião (quanto a mim estou em dúvida), essas caretas que o tempo fazia aos prognosticadores de moléstias imaginárias, valiam mil vezes mais do que todas as discussões de todas as academias médicas do mundo.

Quanto mais, se soubessem que o Sr. Ministro do Império durante esses dias se preocupava seriamente das medidas necessárias ao asseio da cidade, mostrando assim todo zelo em proteger esta bela capital dos ataques do diabo azul. Sirvo-me deste nome, porque estou decidido a não falar mais em cólera, enquanto não resolverem definitivamente se é homem, se é mulher ou hermafrodita.

Para este fim o Sr. Pedreira consultou o presidente da câmara municipal, e incumbiu ao Sr. Desembargador chefe de polícia a inspeção do serviço, cujo regulamento será publicado oportunamente.

Com as providências que se tomaram, e especialmente com a medida da divisão dos distritos e da combinação da ação policial com o elemento municipal, a fim de remover quaisquer obstáculos, creio que podemos esperar resultados úteis e eficazes.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
José Martiniano de Alencar nasceu em 1º de maio de 1829, em Mecejana/Fortaleza, no estado do Ceará. Ele se destacou como um dos mais importantes romancistas da literatura brasileira e um dos principais representantes do romantismo no Brasil. Começou sua carreira literária em 1856, com a publicação de "Os Espectros", mas ganhou notoriedade com obras como "Senhor de Engenho", "Iracema" e "O Guarani". Seus romances frequentemente exploram temas nacionais, a cultura brasileira e a identidade nacional, utilizando personagens e cenários do Brasil para refletir a realidade do país. Além de romancista, Alencar também foi advogado, político e dramaturgo, contribuindo significativamente para a literatura e a cultura brasileira. Ele exerceu cargos políticos, incluindo o de deputado, e foi um defensor da causa abolicionista. Faleceu em 12 de dezembro de 1877, no Rio de Janeiro, em decorrência de tuberculose. Seu legado literário é imenso, e ele continua a ser estudado e admirado por sua contribuição à formação da literatura brasileira.
As principais características do estilo de escrita de José de Alencar incluem: a) Romantismo Nacionalista: buscou valorizar a cultura e a identidade brasileira, incorporando elementos locais e personagens típicos em suas obras ; b) Prosa Poética: Seu estilo é marcado por uma linguagem rica e elaborada, com descrições vívidas e poéticas que evocam emoções; c) Personagens Arquetípicos: Ele criou personagens que representam ideais românticos, como a heroína pura e o herói forte, refletindo valores da época; d) Cenário e Natureza: A natureza brasileira é frequentemente um elemento central, descrita de maneira detalhada e simbólica, contribuindo para a ambientação das histórias; e) Temas Sociais e Morais: abordou temas como amor, honra e conflitos sociais, frequentemente explorando as tensões entre o individual e o coletivo; f) Diálogos e Linguagem Coloquial: seus diálogos são naturais e expressivos, refletindo a fala do povo, o que traz autenticidade às interações entre os personagens.

(Crônicas publicadas no “Correio Mercantil”, de 3 de setembro de 1854 a 8 de julho de 1855, e no “Diário do Rio”, de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro do mesmo ano, ambos os jornais do Rio de Janeiro).

Fontes:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. Publicado originalmente em 1874. Disponível em Domínio Público.  
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Antonio Brás Constante (A Letra Partiu da Mão e Formou o Grão)


A letra partiu da mão e formou o grão. Voou entre rimas, pousando em novas terras a serem descobertas e ali germinou, formando palavras, desabrochando em frases, encantado olhares com sua beleza suave;

O pequeno embrião textual desenvolveu parágrafos profundos, até se transformar em um poema pronto para se mostrar ao mundo. Sob o seio de sua sombra descansaram os sonhadores, que deitados na proteção de seu colo, acalentaram-se em seus versos utópicos, curando eventuais dissabores;

Na beleza projetada por sua linguagem, paixões se incendiaram em centenas de cores. Uma parte desses matizes tomou a forma de amores, enquanto das outras partes sobraram apenas amargas dores;

As suas curvas poéticas encantaram romancistas e trovadores, despertando os próprios talentos sobre a figura escrita que estavam lendo e nelas totalmente se envolvendo.

Do caldo de sua seiva virgem, autores extraíram o bálsamo para a conquista de suas musas adoradas. E no fruto em ti formado, se desenvolveram novas ideias que alimentaram mil escritores;

Restaram suas sementes, leves como a brisa do vento, que enfim voaram pelas memórias de tantos leitores, germinando em novas mentes. Algumas caindo em terreno fecundo, de onde brota toda poesia, pois pousaram com maestria e festa na imaginação louca dos poetas.
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Antonio Brás Constante é natural de Porto Alegre. Residente em Canoas RS. Bacharel em computação, bancário e cronista de coração, escreve com naturalidade, descontraída e espontaneamente, sobre suas ideias, seus pontos de vista, sobre o panorama que se descortina diferente a cada instante, a nossa frente: a vida. Membro da ACE (Associação Canoense de Escritores).

Fontes: 
Texto enviado pelo autor em 21 de outubro de 2012
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Asas da Poesia * 46 *

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