02 julho 2025

Artur Azevedo (O Palhaço)


(História Triste para um Dia Alegre)

Como se explica que o Saraiva, um homem que tomava a sério as coisas mais cômicas da vida, e, segundo afirmavam as pessoas que o conheciam mais de perto, nunca ninguém viu rir, como se explica que o Saraiva, na terça-feira gorda de 1885, saísse de casa depois de jantar e, sem dizer nada à senhora, comprasse uma vestimenta de palhaço, uma cabeleira e uma máscara, e com tais objetos se metesse no seu escritório na Rua do Hospício, de onde saiu disfarçado? Ninguém diria que escondido naquela roupa alegre, muito branca e semeada de rodinhas vermelhas, e por baixo daquela cabeleira azul, encimada por um chapeuzinho minúsculo e pontiagudo, e por trás daquela carranca jocosa, que ria de um rir comunicativo, estivesse o grave comerciante, que parecia haver nascido para vida monástica.

A esposa desse urso, D. Balbina, era, quando se casou, uma rapariga expansiva e risonha; teve, porém, que se submeter ao feitio dele: tornou-se tão séria e tão sensaborona como o Saraiva, e, sozinha em casa, sem filhos, sem amigas, porque o marido não queria visitas, aborrecia-se muito.

Aborrecia-se tanto que procurou uma distração, e encontrou-a num belo rapaz, seu vizinho, que de vez em quando pulava o muro do quintal para fazer-lhe companhia, e consolá-la daquele silêncio e daquela solidão.

Infelizmente para ela, outro vizinho, por inveja ou simplesmente por maldade, escreveu uma carta anônima ao Saraiva, de que ele tinha um sócio de cuja existência não suspeitava – e ora ai está como se explica que naquela terça-feira gorda, depois de dizer a D. Balbina que ia para o escritório, onde se demoraria até tarde da noite, fechando uma correspondência que devia partir no dia seguinte, o austero e sisudo negociante foi se vestir de palhaço para apanhar a esposa em flagrante delito.

– Eu saio, os criados saem, pensou ele; se ela tem realmente um amante, é de supor que aproveite a ocasião para metê-lo em casa…

Bem pensado, porque um quarto de hora depois de sair de casa o marido, o amante saltava o muro, e naquela terça-feira gorda, apesar de ter ficado em casa, D. Balbina divertiu-se mais que muitos foliões, nas patuscadas dos préstitos e dos bailes.

Havia já duas horas que o vizinho fazia companhia à solitária vizinha, quando a campainha do portão do jardim foi violentamente agitada. D. Balbina chegou à janela e avistou um tilburi, cujo cocheiro, mal que a viu, gritou:

– Mande cá uma pessoa, minha senhora!

Não havia um criado em casa. D. Balbina teve que ir pessoalmente abrir o portão.

– Que é? – perguntou ela.

– Minha senhora, este palhaço tomou o meu tilburi, e mandou tocar para esta casa; mas em caminho parece que teve uma apoplexia e morreu!

Efetivamente, o Saraiva, homem sanguíneo, que não pensou nas consequências de pôr aquela cabeleira e aquela máscara depois de jantar, tinha morrido no tilburi.

Deixo ao leitor o cuidado de pensar no espanto e na confusão que isso causou, e na tragicômica anomalia daquele negociante austero, estendido morto num canapé, e amortalhado em vestes de palhaço.

Só direi que D. Balbina, passado o período do luto, esposou o solicito vizinho que a consolava naquele silêncio e naquela solidão.

E até hoje, e lá se vão mais de vinte anos, ela não atinou com o motivo que levou o seu primeiro marido a vestir-se de palhaço… para morrer.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo, jornalista, poeta, contista e teatrólogo, nasceu em São Luís/MA, em 1855, e faleceu no Rio de Janeiro/RJ, em 1908. Aos oito anos Artur já demonstrava pendor para o teatro, brincando com adaptações de textos de autores. Muito cedo começou a trabalhar no comércio. Depois foi empregado na administração provincial, de onde foi demitido por ter publicado sátiras contra autoridades do governo. Aos quinze anos escreveu a peça Amor por anexins, que teve grande êxito, com mais de mil representações. Transferiu-se para o Rio de Janeiro, no ano de 1873, e logo obteve emprego no Ministério da Agricultura. Dedicou-se também ao magistério, ensinando Português. Mas foi no jornalismo que ele pôde desenvolver atividades que o projetaram como um dos maiores contistas e teatrólogos brasileiros. Fundou publicações literárias, como A Gazetinha, Vida Moderna e O Álbum. Colaborou em A Estação, ao lado de Machado de Assis, e no jornal Novidades, onde seus companheiros eram Alcindo Guanabara, Moreira Sampaio, Olavo Bilac e Coelho Neto. Foi um dos grandes defensores da abolição da escravatura, em seus ardorosos artigos de jornal, em cenas de revistas dramáticas e em peças dramáticas, como O Liberato e A família Salazar, proibida pela censura imperial e publicada mais tarde em volume, com o título de O escravocrata. Escreveu mais de quatro mil artigos sobre eventos artísticos, principalmente sobre teatro, nas seções que manteve, sucessivamente, em diversos jornais.. Multiplicava-se em pseudônimos: Gavroche, Petrônio, Cosimo, Juvenal, Dorante, Frivolino, Batista o trocista, e outros. Embora escrevendo contos desde 1871, só em 1889 animou-se a reunir alguns deles no volume Contos possíveis, dedicado pelo autor a Machado de Assis, que era seu companheiro na secretaria da Viação e um de seus mais severos críticos. Em 1894, publicou o segundo livro de histórias curtas, Contos fora de moda, e mais dois volumes, Contos cariocas e Vida alheia, constituídos de histórias deixadas por Artur nos vários jornais em que colaborara. Suas comédias fixaram aspectos da vida e da sociedade carioca. Teve em vida cerca de uma centena de peças de vários gêneros encenadas em palcos nacionais e portugueses. Outra atividade a que se dedicou foi a poesia. Foi um dos representantes do Parnasianismo, pelo temperamento alegre e expansivo, não tinha nada que o filiasse àquela escola. Um poeta lírico, sentimental, e seus sonetos estão perfeitamente dentro da tradição amorosa dos sonetos brasileiros.

Fontes:
AZEVEDO, Artur de. Contos.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Asas da Poesia * 47 *

Poema de LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE Pinhalão/PR ASPIRAÇÃO "Ah, beija-me com os beijos da tua boca." (Ct. 1.2) Estes lindos olhos te...