19 abril 2025

Asas da Poesia * 13 *


Soneto de
EDY SOARES
Vila Velha/ES

Filhos da guerra

É noite e aquelas pobres mãos, vazias,
que esmolaram em busca de migalhas
seguram contra o peito, em meio às tralhas,
faminta e escaveirada, uma das crias...

Enquanto o mundo, envolto em tantas falhas,
serve banquete e brinda às regalias
há tantas mães chorando as noites frias
e as procissões cruentas das cangalhas. 

Quem há de retirar a cruz dos ombros
daqueles que palmilham sobre escombros,
dos miseráveis de um país em guerra?...

Quem há de controlar mentes insanas
e ideologias torpes soberanas
que há tanto tempo fazem mal a Terra?...
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Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/ Portugal

Escrevo-me
nesta vontade de existir para além de mim
de acrescentar rascunhos ao discorrer dos dias
um começo sem um fim em si
devorando instantes na turbulência do caos
Sentado no sofá da minha inquietação
saboreio tragos do vinho iluminado
aguçando o paladar dos sentidos
ébrios momentos de vacilante deambular
Pairo numa nuvem letárgica
o tic-tac dos segundos comprime-me a pele
belisca-me o sentido das coisas
neste pensar desligado de tudo
Escrevo-me
para justificar a minha existência
burilando constantemente o frio gume
do poema da minha irrealidade.
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Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Dormirá nas bermas das estradas
(Manuel Lima Monteiro Andrade in "Mãos abertas" p. 42)

Dormirá pelas bermas das estradas
O sonho a que ninguém abrir o peito
Definhando ao pó sujo e tão desfeito
Onde passam pessoas apressadas.

Bastavam três palavras conversadas
Num olhar de amizade e de respeito
Pão e sopa na mesa e morno leito
Para o salvar de tão frias facadas.

Um sonho é uma riqueza sem dinheiro
Um impulso tão forte e tão inteiro
Que a vida se converte em "quero e posso!"

Num mundo tão ingrato e tão padrasto
Por vezes, quando tudo já foi gasto
O sonho é o sumo bem que ainda é nosso.
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Poema de
ANDRÉ GRANJA CARNEIRO
Atibaia/SP, 1922 – 2014 , Curitiba/PR

Arqueologia

0 agora é estrela cadente
na subterrânea memória.
Com pincéis delicados
limpo restos à procura da história.
Homem de Piltdown, quero avós primatas.
Arqueólogo amador,
em elos antigos
acrescento asas.
No retrato falta
a ruga deste instante,
o verso vive atrás
sua melhor face.
0 imediato relâmpago submerge em cinzas cinzentas.
A mão com a caneta reinventa no branco do caderno.
Faíscas atrás da testa são
fósseis do amanhã,
neurônios incendeiam
as melhores sinapses
e o poema desaparece
nas placas tectônicas
das bibliotecas.
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Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

O andarilho

“Não me fale de amor”, alguém me disse,
“o amor morreu, já não existe mais”.
E eu retruquei que aquilo era tolice,
– será pecado alguém amar demais?

Ficou parado ali, talvez me ouvisse
que o amor perdoa e espera, sem jamais
querer em troca o favo da meiguice
que perpetua a vida entre os casais.

O tempo foi passando e pela rua
eu vi aquele vulto olhando a lua
perambulando como um peregrino.

E percebi, então, que aquele rosto
marcado pela dor, pelo desgosto,
nunca teve um Amor em seu destino!
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Soneto de
GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

Entardecer

A paz do entardecer... Fascinação...
Com mil beijos de cor sobre o universo!
Eu sinto, bem no fundo, o coração
querer cantar essa beleza em verso.

Fazendo, dessa paz, sublimação,
inunda-se no belo, submerso,
vivendo, assim, total transmutação,
esquecendo que o mundo é tão perverso.

Vai sonhando mil sonhos coloridos,
cantando mil canções, só de alegria,
e esquece a solidão dos tempos idos.

Realizando assim sua utopia,
de posse, então, de sétimos sentidos,
contempla o pôr-do-sol em poesia!
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Soneto de
MIGUEL RUSSOWSKY
Santa Maria/RS (1923 – 2009) Joaçaba/SC

Arrependimento

Um por um, os meus sonhos, nesta vida,
Despi no andar do tempo modorrento
Qual árvore esfolhada pelo vento
Numa tarde outonal, entristecida.

Quebrei-me um pouco, assim, a cada ida
À procura não sei de qual intento.
Deixei amor, amigos e, ao relento,
Destroços de minha alma enrijecida.

E hoje, velho, ao voltar da caminhada,
Tropeço em meus pedaços pela estrada
Com saudosa visão aqui e ali.

Não mais me iludo, e essa descrença atesta
Que passarei o tempo que me resta
Recolhendo os pedaços que perdi.
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Soneto de
ALMA WELT
Novo Hamburgo/RS (1972 – 2007)

O interdito

Este senso de beleza que ganhamos
De Deus, em nossa própria natureza,
É o melhor de nós, que desfrutamos
Do paraíso, não perdido, com certeza,

Se jaz em nossa alma assimilado
E posso recompô-lo a cada passo
Quando estou a vagar pelo meu prado,
Diária romaria que ainda faço...

E vejo que está completa a vida,
Não perdemos nada, isso me intriga,
A expulsão nos foi só advertida

Como falsa reprimenda, só um pito
Diante do mistério do interdito
Contra o qual Deus mesmo nos instiga...
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Não opino, nem me meto,
em brigas de namorados;
vocês hoje estão brigando
e amanhã estão abraçados.
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Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba/PR

Fui ali
Emprestar um pouco
De pó das estrelas
Pra que
Com meu abraço,
Teus olhos
Voltem
A
Brilhar. 
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Soneto de
GÉRSON CÉSAR SOUZA
São Leopoldo/RS

Neblina

Tal qual o véu que cobre um rosto de menina,
tua beleza amanheceu hoje escondida.
Chegou o inverno... e eu te encontro adormecida,
cidade amada, sob um manto de neblina...

Meus passos calmos já conhecem cada esquina,
cada comércio, cada rua ou avenida.
Mesmo esta névoa é uma velha conhecida,
parceira antiga na jornada matutina.

Eu acompanho este momento em que despertas:
luzes se acendem... as janelas são abertas...
e o sonolento vai e vem da nossa gente.

Quando a neblina vai, por fim, se dissipando,
alto no céu há um sol ansioso te esperando
para abraçar teu frio e dar-te um beijo quente!
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Aldravia de
MARÍLIA SIQUEIRA LACERDA
Ipatinga/MG

noite
dia
silêncio
dobrado
feriado
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Setilha de
JOSÉ LUCAS DE BARROS
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

Entre as coisas que a vida me propôs,
desde o tempo feliz da tenra idade,
e eu procuro seguir com todo o empenho,
vêm, na linha de frente, a honestidade
e os princípios do amor e da harmonia,
porque Deus vai querer que eu prove, um dia,
o que fiz pra ganhar a eternidade.
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Epigrama de
ANTÔNIO SALES
Fortaleza/CE, 1868 – 1940

A opinião severíssima
te condena sem razão:
tu serias fidelíssima
se fosses… mulher de Adão.
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Poema de
FERNANDO PESSOA
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935

A morte é a curva da estrada 

A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te ouço a passada
existir como eu existo.

A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.
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Décima de
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/RN. 1951 – 2013, Natal/RN

O sertão é um poema…

Deus na sua magnitude,
fez do sertão um palácio,
deixou escrito um prefácio
na parede do açude;
disse da vicissitude
da flor e do gineceu,
de um concriz que se escondeu
nos garranchos da jurema,
o sertão é um poema
que a natureza escreveu.
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Trova de
CLÁUDIO DE CÁPUA
São Paulo/SP, 1945 – 2021, Santos/SP

Os braços vindos de guetos,
sob o sol ou sob a lua,
amarelos, brancos, pretos,
clamam justiça na rua.
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Indriso de
ISIDRO ITURAT
São Paulo/SP

Lua cheia

A velha mandinga contava à sua neta
sobre os sortilégios da Mãe Lua,
lá na boa noite, lá na noite quieta:

“Para a deusa nunca vais olhar,
porque se te mira quando tu a miras,
o Pássaro Prata ouvirás cantar.

E ao canto da ave o ventre se alua
e do bom marido, saberás das iras”
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Olga Agulhon (Os Pássaros)


Nascidos ali, germens da terra, aquelas duas crianças, primos de sangue, irmãos de coração e de alma, cresciam felizes, livres, soltos, escapando, nem sempre ilesos, de uma arte atrás da outra.

Naquela fazenda, longe das cidades, nem tanto pela distância, mas pela lama ou poeira das estradas, não havia luz elétrica. Portanto, não conheciam a televisão, o videogame, o computador e todos esses outros instrumentos que, hoje em dia, mantêm as crianças longe da fantasia dos tempos de outrora.

Faziam seu próprios carrinhos, brincavam nos riachos e engoliam peixinhos vivos para aprenderem a nadar, faziam balanços nos galhos mais altos das árvores, percorriam longas distâncias atrás da borboleta mais bela, velavam os bichinhos que matavam durante suas experiências e preparavam-lhes enterros pomposos, com direito a oração e coroa de flores.

Protagonizavam histórias de príncipes e princesas, falavam com os animais, atormentavam os gansos, domavam os bezerros, montavam nos cavalos e fingiam que eles eram dragões.

Percorriam o milharal em busca da boneca mais bonita e escolhiam loiras, ruivas e morenas, que se transformavam em amigas queridas quando a mágica acontecia.

À noite, corajosos e destemidos, exploravam o escuro do terreiro entre as casas da colônia, na expectativa de um encontro com o saci-pererê ou a mula-sem-cabeça.

Entravam em casa só na hora do dormir, sob as ameaças das mães, que sempre lhe juravam a tal surra de vara de marmelo que eles ainda não tinham experimentado.

Noutras noites, mais poéticos que destemidos, buscavam os vagalumes e contavam estrelas, enquanto ouviam a sinfonia dos grilos e dos sapos do mundo do poço.

Quando chovia, ficavam sentados, concentrados, em volta da mesa da cozinha, sob a luz do lampião-de-gás, ouvindo o tio Darcy contar histórias de assombração vivenciadas por conhecidos seus daqueles e de outros tempos.

Um dia, apareceram por lá duas pás-carregadeiras, contratadas para fazerem uma represa nos fundos da fazenda.

Os dois não gostaram da invasão e não saíram de casa com medo daqueles monstros barulhentos, com armadura de aço, que, em plena luz do dia, comeram imensas quantidades de terra e deixaram um grande buraco por onde passaram.

Mas gostaram muito quando, em alguns dias, a chuva encheu o buraco, transformando-o em um grande lago.

Não tiveram dúvida:

– Vamos navegar!

Buscaram o velho caixote de preparar cimento, tocaram-no com a varinha mágica e transformaram-no em um lindo barco viking.

A menina, mais velha, ajudou 0 primo a subir no barco e o seguiu depressa, empurrando a margem com uma das pernas para que se afastassem para longe, com a força do pensamento e do remo improvisado.

Antes de alcançarem o centro do lago, tão grande para eles, a água invadiu rapidamente o barco e, nesse momento, um colono estragou a aventura das crianças, retirando-as, totalmente embarreadas, daquele mergulho até o fundo.

Naquele dia, sem entenderem as razões, experimentaram a varinha de marmelo, enquanto eram lavados com bucha e sabão de coco. Ficaram com marcas na bunda e nas pernas, mas a alma não entristeceu.

– Amanhã vamos voar!

Voaram. Algumas escoriações apenas e um corte na cabeça foi o saldo da primeira vez, mas voaram: e voavam cada dia melhor, mais alto, para mais longe.

Quando chegou a idade de irem para a escola, a família viu-se obrigada a se mudar para a cidade. Era preciso estudar os filhos para que eles tivessem uma vida melhor, pensava o pai.

Foi a cena mais triste que vi ou que vivi em toda a minha vida.

Não queriam ir e não havia espaço suficiente para os dois no caminhão da mudança, pois não conseguiam entrar levando tudo que lhes era imprescindível.

Os pais não pestanejaram. Não tiveram dó nem piedade: cortaram-lhes as longas asas.

Pelo vidro, lado a lado engaiolados, enquanto enxugavam as lágrimas, fitavam o monte de penas que embelezava o chão vermelho.

Mantiveram-se assim enquanto se distanciavam.

Mantiveram-se assim até que o vermelho do chão se misturou ao vermelho do pôr-do-sol, o branco das penas se misturou ao branco das nuvens e tudo se perdeu no horizonte para nunca mais sair da retina daqueles olhos, que um dia foram olhos de pássaros.
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Olga Agulhon, pedagoga, especialista em Literatura Brasileira e agricultora, nasceu em 1965, em Assis/ SP. Iniciou seus estudos em Maringá/PR. Em 1984 iniciou o curso de agronomia, na Universidade Estadual de Maringá, mas não o concluiu. Formou-se em Pedagogia. Em 1994 terminou o curso de Especialização em Literatura Brasileira, do Departamento de Letras (UEM), fazendo a defesa da monografia com o título A fábula no livro didático. Participou de várias coletâneas e tem poemas, contos e artigos publicados em várias revistas e jornais literários. Autora de Delírios (poesias), As três estatuetas de bronze (infanto-juvenil), O tempo (poesias) e Germens da terra (contos). Foi Secretária Municipal da Mulher, em Maringá.

Fontes:
AGULHON, Olga. Germens da terra.Maringá,PR: Midiograf, 2004.
Imagem criada com Microsoft Bing  

José de Alencar (Os destinos de uma data)


Encontram-se às vezes na história da humanidade certas coincidências tão notáveis, que parecem revelar uma lei fatal e misteriosa, um elo invisível que através dos anos e dos séculos prende entre si os grandes acontecimentos.

O tempo, dizia Píndaro, é o oceano imenso sobre o qual navega a humanidade. Quem sabe se, como o marinheiro lançado sobre a amplidão dos mares, batido pelos ventos e pelas tempestades, o gênero humano não percorre os caminhos já trilhados, e não atravessa as idades revendo na sua torna-viagem as mesmas plagas, os mesmos climas? O espírito se confunde desde que intenta perscrutar tão altos arcanos, e se perde numa série de pensamentos elevados, como os que me assaltaram quando me pus a refletir sobre os destinos do dia 12 de outubro, que marca época nos anais do mundo, da América e do Brasil.

Quando se desdobra esta página do calendário, e se volve os olhos para o passado, vê- se surgir entre as sombras das gerações que morreram dois grandes vultos de heróis, que separados por mais de três séculos, parecem estender-se a mão por sobre o espaço, como para consolidar a sua obra.

No mesmo dia um descobriu um novo mundo, o outro fundou um grande império. Um chamava-se Colombo, o outro era Pedro I. Dois nomes que por si só valem uma história. Entretanto a América e o Brasil deixaram-nos escritos apenas nos livros, como uma simples recordação; e, tomando um nome de empréstimo, nem ao menos copiaram no mármore ou no bronze aquela página de tantas glórias.

O viajante do velho mundo, que contemplou as pirâmides do Egito, as ruínas do Partenon, as abóbadas do Coliseu, os obeliscos e os arcos de triunfo, monumentos de um século, de um povo, ou de um rei somente, não encontra nas plagas americanas nem sequer o nome desse semideus que criou um mundo!

Apenas a espaços, uma palavra perdida, uma exprobração amarga, e mesmo alguns esforços infrutíferos para levar a efeito a idéia de um monumento a Colombo e de uma estátua a D. Pedro.

Tudo isto, porém, passa no turbilhão das idéias que servem de pasto a uma agitação momentânea, e nada resiste a esse esquecimento fatal e prematuro. Dir-se-ia que o presente, temendo ser ofuscado por tão grandes feitos do passado, como que receia transmiti-los às gerações futuras.

Mas o eco das idades, esse brilho que ilumina os séculos, e a que o mundo chama a glória, não há forças que o abafem. Através do tempo ouve-se ainda e sempre esse sublime diálogo que formam, como diz L’Hermenier, as relações do gênio com a humanidade.

Assim, aqueles dois grandes vultos, que parecem perdidos nas sombras do passado, se refletirão com todo o seu brilho na posteridade, principalmente quando o primeiro tem para desenha-lo a pena de um homem como Lamartine, e o outro a história de uma nação como o Brasil.

Talvez que então, quando a marcha dos tempos tiver desvendado altos mistérios do destino, a humanidade possa compreender esse elo invisível que prende dois acontecimentos tão remotos, essa relação inexplicável entre dois homens, essa coincidência providencial de duas revoluções que em épocas diferentes se realizaram no mesmo dia.

Quem sabe se o fato que veio depois de três séculos não era o complemento e o remate do primeiro? Quem sabe se D. Pedro I não foi o continuador de Colombo? Quem sabe se a fundação do Império do Brasil não devia ser uma condição essencial nos futuros destinos da América?

Estes pensamentos nos levariam muito longe, muito além do presente, e nos fariam esquecer que nestas páginas somos o homem do passado, o simples cronista dos acontecimentos de uma semana. Deixemos, portanto, as altas elucubrações, e voltemos aos fatos da atualidade.

Falávamos de gênio, de talento, de glórias passadas e destinos futuros. O presente não é menos fértil em qualquer destas coisas, sobretudo em talento.

O talento! Divinae particulam aurae! Não há nada como o talento. Riquezas, honras, nascimento, nobreza, nada disso vale uma pequena dose daquela inspiração divina. Só ela tem o privilégio da divindade, o dom de criar e inventar.

Se duvidam do que estou dizendo, tomem qualquer jornal da semana, e corram-lhe os olhos, que terão a prova desta minha asserção.

O cólera-morbo andava muito sossegado lá pela Europa e nem sequer ainda se tinha lembrado de escrever o Brasil no seu itinerário ou jornal de viagem, quando um homem de talento necessariamente, teve a feliz ideia de afirmar que a moléstia já estava em caminho e não tardaria a chegar.

Imediatamente fez-se uma revolução, e tivemos uma verdadeira epidemia de cólera-morbo in nomine. Não se falava em outra coisa; não se escrevia sobre outro assunto. Os médicos dissertavam largamente, os profanos gracejavam ou discutiam, a Câmara Municipal trabalhava, e a Academia de Medicina fazia sessões públicas.

Ouvi queixar-se muita gente que de todas essas luminosas discussões nada se concluía; creio porém, que estão mal informados . Se fossem ao escritório de qualquer das folhas diárias desta corte, haviam de ver entrar para a caixa a consequência lógica e verdadeira de toda esta argumentação – a paga das correspondências e publicações a pedido.

A epidemia foi tal, que até foram bulir com a pobre gramática, que estava bem sossegada, e chamaram-na a campo para decidir se o cólera-morbo era masculino ou feminino.

Não me devo meter em semelhante questão; mas, a falar a verdade, prescindindo da gramática, creio que aqueles que dão ao cólera o gênero feminino têm alguma razão, por isso que os maiores flagelos deste mundo, a guerra, a morte, a fome, a peste, a miséria, a doença, etc., são representadas por mulheres.

E o que torna-se mais notável ainda é que os gregos, gente sempre tida em conta de sábia, quando inventaram os seus deuses, fizeram homens Apolo e Cupido, e para mulheres escolheram as Parcas, as Fúrias e as Harpias.

Se as minhas amáveis leitoras não gostaram desta razão, que acho muito natural, chamem a contas os pintores e os poetas, que são os autores de tudo isto. Quanto a mim, não tenho culpa nenhuma das extravagâncias dos outros, e até estou pronto a admitir a opinião do meu colega A. Karr, que explica aquele fato pela razão de que as senhoras são extremos em tudo, tanto que as mais belas coisas deste mundo são também significadas por mulheres, assim como a beleza, a glória, a justiça, a caridade, a virtude e muitas outras que, como estas, não se encontram comumente pelo mundo, mas que existem no dicionário.

Ora, à vista da razão que apresentei, parecia que não devia haver mais dúvida sobre o gênero do cólera; porém o argumento do –h-, que ainda não tinha lembrado aos gramáticos antigos e modernos, veio mudar a face da questão. Homem, que é o símbolo do gênero masculino, começa por –h-; logo, desde que o cólera for escrito com -h- é masculino. A isto não há que responder; e por conseguinte, à vista de um tal argumento, persisto na minha antiga opinião.

Apesar de todas estas discussões interessantes com que se procura entreter o ânimo público, à noite os diletantes não deixam de se encaminhar para o Teatro Lírico, embora tenham muitas vezes o desgosto de esbarrarem com o nariz na porta fechada, como sucedeu segunda-feira.

Disseram que a Charton estava um pouco incomodada, o que bem traduzindo quer dizer que não tinha nada absolutamente.

Ora, admitindo mesmo o caso do incômodo, desejava sinceramente que os espíritos dados às altas e importantes questões de utilidade pública, como sejam as do gênero do cólera, do contágio da moléstia, da sua antiguidade, etc., me elucidassem, por meio de uma discussão esclarecida, um ponto muito duvidoso para mim: e é se as prima-donas têm o direito de adoecerem em dia de representação, e deixarem-nos desapontados sem sabermos o que fazer da noite.

Na minha opinião entendo que uma prima-dona, quando muito, tem unicamente o direito de adoecer na véspera, a tempo de se publicar o anúncio da transferência do espetáculo; e, quando quiser adoecer no mesmo dia, então deve adivinhar de véspera que na noite seguinte estará incomodada, a fim de se prevenir o público, e evitar-lhe uma desagradável surpresa.

Felizmente o incômodo da Charton foi passageiro, e as soirées Líricas continuaram sem mais transferências até sexta-feira, em que nos deram a Semiramide, em benefício da Casaloni. A noite foi ruidosa: aplausos, rumor, flores, versos, brilhantes, houve de tudo, até mesmo uma pateada solene. Foi por conseguinte uma festa completa.

Para fazer diversão à música italiana, ofereceram-nos, sábado da semana passada, no Teatro de São Pedro, um outro benefício de música alemã clássica, no qual os entendedores tiveram ocasião de apreciar coros magníficos a três e quatro vozes, e de gozar belas recordações dos antigos maestros, hoje tão esquecidos por causa das melodias de Rossini e Donizetti e das sublimes e originais inspirações de Verdi e Meyerbeer.
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(Crônica publicada no “Correio Mercantil”, de 3 de setembro de 1854 a 8 de julho de 1855, e no “Diário do Rio”, de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro do mesmo ano, ambos os jornais do Rio de Janeiro).

Fontes::
José de Alencar. Ao Correr da Pena. Publicado originalmente em 1874.
Disponível em Domínio Público. 
Imagem criada com Microsoft Bing

17 abril 2025

Asas da Poesia * 12 *


Poema de
ANÍBAL BEÇA
Manaus/ AM, 1946 – 2009

Manhã

A manhã nasce das muitas janelas
deste sereno corpo fatigado,
sede  dos meus caminhos sem cancelas,
na luz de muitos astros albergados.

Casa em que me recolho das mazelas,
dos louros, derroteiros, lado a lado,
para de mim ouvir franca sequela:
Ecce Homo! Eis o triste camuflado.

Essa tristeza antiga em residência,
às vezes se constrói em face alegre,
máscara sem eu mesmo em aparência

num carnaval insólito em seu frege.
O que me salva a cor nessa vivência
é saber que a poesia é quem me rege.
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Soneto de
MARIA SANTOS NASCIMENTO
Rio de Janeiro/RJ

Dilema

Eu que pensei ser livre como o vento,
não fraquejar em cada despedida,
aceitar meus fracassos sem lamento
e nunca me queixar das leis da vida…

Eu que pensei domar meu sentimento,
e ser, na luta, justa e destemida,
agora, com você no pensamento,
pouco importa vencer ou ser vencida…

O nosso bem-querer gera perigos,
mas, como só podemos ser amigos,
é fácil controlar as emoções…

Difícil é lutar contra a saudade
e acreditar que os elos da amizade
têm mais poder que a fúria das paixões!…
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Trova de
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/CE

Foi a força do migrante
com seu braço varonil
que moldou este gigante,
hoje, chamado Brasil!
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Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba / PR

Ausência...
O tempo
Descolore
A janela
Mas a esperança
Da tua chegada,
Ainda mantém
Um fio
De brilho
No meu
Olhar.
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Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Eu sei que voarei, na imensidade
(João Baptista Coelho, in "Um outro livro de Job", p. 75.)

Eu sei que voarei, na imensidade
Do reino da palavra que é magia
Se as brancas asas gráceis da Poesia
Me derem essa pura caridade.

Com alma solta em franca liberdade
Planarei sobre o mar e a maresia
E tudo o que até aqui não entendia
Verei na limpidez de uma verdade.

Nesse dia em que a treva se dilui
Serei mais do que algum dia já fui
Numa grandeza de alma sem ter fim.

E este mundo será meu por completo
Que no imenso infinito eu me projeto
E já não caibo inteiramente em mim. 
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Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Eu me faço de blindado.
Amor? Bobagem... Pieguice...
Meu medo é que, apaixonado,
eu me envolva na tolice.
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Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Vita nuova

Se ao mesmo gozo antigo me convidas,
Com esses mesmos olhos abrasados,
Mata a recordação das horas idas,
Das horas que vivemos apartados!

Não me fales das lágrimas perdidas,
Não me fales dos beijos dissipados!
Há numa vida humana cem mil vidas,
Cabem num coração cem mil pecados!

Amo-te! A febre, que supunhas morta,
Revive. Esquece o meu passado, louca!
Que importa a vida que passou? Que importa,

Se ainda te amo, depois de amores tantos,
E inda tenho, nos olhos e na boca,
Novas fontes de beijos e de prantos?!
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Trova de 
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Eu sou príncipe tristonho
porque, na história real,
não há, na escada do sonho,
sapatinhos de cristal!...
= = = = = = 

Poema de
ROBERTO PINHEIRO ACRUCHE
São Francisco de Itabapoana/RJ

Exaltação a São Francisco de Itabapoana

São Francisco de Itabapoana
Como eu gosto de você.
Sua beleza encantadora
Há de sempre resplandecer.

Suas praias, sua grandeza,
Seus campos e floração colorida,
Obra prima da natureza
Eu me orgulho de ter nascido aqui.

Salve seu povo hospitaleiro,
Bom, amigo e trabalhador;
Salve terra abençoada
De São Francisco nosso senhor…

Abraçada pelos rios,
Beijada pelo mar,
Ornada com lagoas
Você é linda, sempre vou lhe amar.

São Francisco de Itabapoana
Onde o sol brilha mais o ano inteiro,
Estrela de grandeza reluzente
Do Estado do Rio de Janeiro.
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Trova de
JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA
Bauru/SP

Ontem, família reunida...
Cantos, abraços, folias.
Hoje, em telas entretida
no silêncio de mãos frias!
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Poetrix de
SUELY BRAGA
Osório/RS

O pensamento voa
    ao sabor do vento
    com o pássaro que revoa.
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Glosa de
GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

Estrela do mar

Mote:
Perguntei para uma estrela
que encontrei à beira-mar:
- O que faço para tê-la
se você pertence ao mar?
(Sarah Rodrigues)

Glosa:
Perguntei para uma estrela
num passeio matinal,
pela praia, logo ao vê-la:
Você é mesmo real?

Era a estrela da alegria,
que encontrei à beira-mar,
que ao enfeitar o meu dia,
enfeitiçou meu olhar!

Como posso não querê-la
se é tão linda e me fascina?
– O que faço para tê-la,
bela estrela pequenina?

Mas fico só no desejo...
Sei que é esse o seu lugar,
só posso lhe dar meu beijo,
se você pertence ao mar!
= = = = = = 

Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

Foi sempre assim! Escondida
no engodo que a desvirtua,
a Verdade anda vestida
quando a Miséria está nua!
= = = = = = 

Hino de 
CIANORTE/PR

Cianorte de viva esperança
de uma luz reluzente de paz
Óh cidade de encantos perenes
és abrigo de um verde eficaz

Cianorte de braços abertos
que enaltece o mundo feliz
és o fruto de um grande progresso
A grandeza que o povo bem quis

Cianorte, Cianorte
és a fonte de um grande valor
Cianorte de paz e eterno fulgor
que aquece com a chama do amor

Óh que terra celeira e farta
verdejante de intenso vigor
Óh cidade de campos e flores
construída com paz e amor

Cianorte de famas e glórias
és a honra de um povo gentil
por ser capital do vestuário
o orgulho do nosso Brasil

Cianorte, Cianorte
és a fonte de um grande valor
Cianorte de paz e eterno fulgor
que aquece com a chama do amor
= = = = = = = = =  

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

Somente o amor constrói 

O amor universal é o limite
para infinitas dores e alegria.
Nada o arrefecerá, só acredite
nas bênçãos que do céu Ele te envia.

És a mãe amorosa para os filhos
que são três para só, orientares.
Não é tarefa fácil, mas com brilhos
tens enfrentado lutas aos milhares.

Para quem tem o amor como alimento
e a caridade ao próximo, não julga
atitudes alheias, se o acalento,

que tem a oferecer não  é de ajuda;
portanto não dês bola a quem divulga
opiniões vazias , Deus, acuda!
= = = = = = = = =  = = = = 

Uma Lengalenga de Portugal
OS ESCRAVOS DE JÓ

 “Os escravos de Jó” é uma cantilena cuja origem, significado e letra é motivo de controvérsia. Presume-se que fazem alusão aos escravos que em África juntavam caxangá (uma espécie de crustáceo). É usada num jogo infantil que remota ao século XVIII. Para se jogar, forma-se uma roda de jogadores e, ao ritmo da lengalenga, inicia-se o jogo passando um objeto que têm na mão direita para o vizinho da direita, ao mesmo tempo que recebem com a mão esquerda o objeto do vizinho da esquerda, trocando-o rapidamente de mão. O que se enganar e deixar cair o objeto, perde e sai da roda.
 
 Os escravos de Jó,
 Jogam caxangá.
 Tira, põe, deixa ficar.
 Guerreiros com guerreiros,
 Fazem zigui, zigui, zagui. (repete)
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Tigelinha d’água morna,
o que faz na prateleira?
Esperando o meu benzinho,
que chega segunda-feira.
= = = = = = = = =  

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Tecendo o destino

De dia ela tece,
E a noite, ponto por ponto
Ela destece...
À espera do seu Amor,
Tecendo o Destino…
= = = = = =

Cordel de 
GUIBSON MEDEIROS
Cabedelo/PB

Cordel de novelas

Belíssima Despedida de solteiro
A próxima vítima O rei do gado
O profeta Roque santeiro
Sassaricando O bem amado 

Cabocla Da cor do pecado
A favorita Estrela guia
O astro Cordel encantado
A padroeira Eterna magia

Alma gêmea As três Marias
A sucessora Vereda tropical
Mulheres de areia Maria Maria
Selva de pedra Lua de cristal

Olho no olho Pecado Capital
O amor está no ar
Salomé Fera radical
Escrava Isaura Livre para voar

Aquele beijo Toma lá da cá
Carinhoso Sabor da paixão
Corpo a corpo Direito de amar
Final feliz Explode coração

Pedra sobre pedra O casarão
Terra nostra O mapa da mina
Dancin days A próxima atração
Cambalacho Negócio da China

Feijão maravilha Gina
A gata comeu Marrom glacê
Anjo mau gente fina
Tiêta Voltei pra você

Roda de fogo Bambolê
Laços de família Esplendor
Começar de novo Renascer
Amor eterno amor

Mandala Vila Madalena
Torre de babel Escalada
Deus nos acuda Helena
Minha doce namorada

Eu prometo A viagem
Viver a vida Um sonho a mais
Vida nova Irmãos coragem
A sombra dos laranjais

América Pátria minha
Paraíso Tropicaliente
Gabriela a Moreninha
Por amor A vida da gente

Chega mais cama de gato
Beleza pura felicidade
Mico preto Bicho do mato
O dono do mundo celebridade

Um anjo que caiu do céu
Fina estampa sete pecados
Dona Xepa Barriga de aluguel
De corpo e alma Coração alado

Baila comigo Estúpido cupido
O amor é nosso Passione
O noviço O homem proibido
Tempos modernos O clone

Quatro por quatro Locomotivas
Louco amor Pecado rasgado
Como uma onda Água viva
Sol de verão corpo dourado

Sinhá moça Meu bem querer
Perigosas peruas Vira  lata
Senhora do destino Quem é você
Zazá Rainha da sucata

Fogo sobre terra Bang  bang
Porto dos milagres Araguaia
Jogo da vida Pacto de sangue
Era uma vez Saramandaia

De quina pra lua Brilhante
Marina Meu bem meu mal
Pai herói Coração de estudante
Cubanacan Paraíso tropical

Sinhazinha Flô Desejo proibido
O primeiro amor Hipertensão
Partido alto Sétimo sentido
Vale tudo insensato coração

O outro Anjo de mim
Morde e assopra Padre Tião
Pé na jaca terras do sem fim
Meu pedacinho de chão

O cravo e a Rosa Duas vidas
Te contei Que Rei sou eu
O semideus fera ferida
As três irmãs Sonho meu.
= = = = = = = = =  

Asas da Poesia * 46 *

Poema de LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE Pinhalão/PR Tuas Mãos "Tua mão esquerda está sob minha cabeça, e tua direita abraça-me " (Ct.8....