Durante meses, Panetôncio frequentou um consultório psiquiátrico com a reclamação de que havia um imenso jacaré debaixo de sua cama.
— E toda noite ele me mostra uma boca cheia de dentes…
— Não são dentes, são presas. E não se diz “boca”. Jacarés não têm boca, e sim mandíbulas.
— Não importa, doutor, o caso é que não aguento mais.
O médico tentava persuadir o paciente de todas as formas possíveis:
— Panetôncio, você não reside num prédio de apartamentos em plena Barra da Tijuca com segurança, circuito interno de televisão e alarmes por todas os cantos?
— Perfeito, mas o jacaré me amedronta apesar de toda essa tecnologia de ponta.
— Não existe nenhum jacaré.
— Claro que existe, doutor. E a cada dia parece mais furioso.
— Só na sua imaginação.
— Não é imaginação, doutor, é real.
— Sua esposa viu esse suposto jacaré?
— Não.
— Nem seus filhos?…
— É verdade!
— Seu sogro chegou a dormir uma noite no quarto e também nada viu, ou ouviu?
— Meu sogro dorme mais que a cama. É só recostar a cabeça e no minuto seguinte está contando carneirinhos.
— Sua sogra?
— Uma besta quadrada. Não enxerga um palmo adiante do nariz. A única coisa que sabe fazer, e cá entre nós, muito bem, é ver defeitos em mim e maquinar intrigas do arco da velha com minha mulher.
— Seu irmão dormiu lá com a esposa dele, na semana passada, não dormiu?
— Dormiu.
— E não viu nem ouviu absolutamente nada?
— Meu irmão, doutor, só pensa naquilo 24 horas por dia. Não tem uma noite que deixe a mulher descansar em paz. Esteja em casa ou na casa dos outros, o negócio dele é aprontar. Nem os dias sagrados da companheira -, o senhor compreende -, aqueles do famoso “lacinho vermelho”, ele respeita.
— Fazer amor faz um bem danado à saúde, Panetôncio. Alivia o estresse do dia-a-dia. A alma se liberta das tensões e fica mais leve e solta. Concorda?
— Concordo, doutor, concordo plenamente. Mas o senhor precisa entender o seguinte: balançando o esqueleto, ele não vai ver nada, como, aliás, não viu. E o jacaré continua embaixo da minha cama, tranquilo, sem problemas, me enchendo o raio do saco.
— Insisto, Panetôncio, que não há nenhum jacaré debaixo da sua cama. Volte para seu quarto e procure ficar em paz. Sua esposa, da última vez que falou comigo, reclamou que, por causa desse bendito jacaré, você não só mudou de quarto, como abandonou a cama. Esse negócio está me cheirando a outra coisa…
— Que outra coisa, doutor?
— Amante. Você arranjou uma namoradinha e está engabelando dona Líliam com essa história sem pé nem cabeça.
— Não trairia minha cara metade por nada deste mundo. Ainda que encontrasse a Bruna Lombardi peladinha, dos pés a cabeça.
— Escute o que vou dizer: sua esposa, com essa conversa toda, está abalada. Muito abalada. Sem contar que também está necessitada. Mulher necessitada é perigosa. Começa a subir pelas paredes. Se você não dá conta, não comparece…
— Sei disso tudo doutor. Mas como posso me concentrar?
— Você pode. Você é um homem ou é um rato?
— Depois que o jacaré apareceu comecei a ter dúvidas sobre minha masculinidade. Acho que sou um coelho assustado. E coelho tem medo de jacaré. Li algo a respeito numa revista especializada em animais. O doutor seguia na sua linha de conduta e perseverava com acirrada veemência na ânsia de demover a ideia fixa da cabeça de seu paciente.
— O jacaré -, Panetôncio, ou melhor, esse famigerado jacaré é apenas uma alucinação passageira -, fruto da sua estafa, da sua debilidade. Resumindo, meu amigo, coisa provocada pelo excesso de trabalho e pela fadiga. Você tem se desgastado muito, ultimamente. Sua ocupação, na Bolsa de Valores -, compreendo -, é muito pesada e irritante. Deixa os nervos a flor da pele, a cabeça a mil, os neurônios em frangalhos. Sei que não é fácil passar o dia inteiro com três telefones no ouvido…
— Quatro, doutor, quatro.
— Que seja! Três, quatro ou apenas um, não importa. O que conta, o que faz diferença, é você estar o tempo todo gritando, berrando e gesticulando feito um desmiolado e destelhado das ideias. Preste atenção no conselho que vou lhe dar, e vou fazê-lo como seu amigo, não como médico. Tire uns dias e saia com a família em férias. Coloquei, inclusive, meu sítio, em Pedra de Guaratiba, à sua disposição. Está lembrado?
— Estou, doutor. Mas o jacaré está cada vez mais esfomeado. Se o senhor, que é um especialista, que estudou anos a fio para procurar dar uma solução plausível para o meu caso e, no final das contas, não puder, ou não conseguir me ajudar, quem poderá me levar à cura dessa merda, ou à merda dessa cura?
O rapaz continuou a frequentar, ainda por um bom tempo, as seções no consultório, como sempre fazia, todas as quartas-feiras, na parte da tarde. Com isso, o médico estava quase convencendo a criatura de que tudo não passava, realmente, de fantasias e devaneios oriundos de um desgaste físico e mental acima da linha do ponderável, e que, em decorrência disso, se levasse os próximos encontros mais a sério, logo sairia completamente restabelecido.
Entretanto, por três quartas-feiras seguidas, Panetôncio não compareceu ao consultório, nem comunicou à secretária o motivo de sua ausência. Apreensivo e visivelmente preocupado, o psiquiatra ligou para a residência de seu cliente.
— Gostaria de falar com seu Panetôncio — disse o doutor à mulher com a voz chorosa que o atendeu.
— O Pane morreu… Quero dizer, o Panetôncio faleceu… — respondeu a pessoa, em soluços.
— Com quem falo?
— Líliam, a esposa.
— Dona Líliam, sou eu, o médico psiquiatra do seu marido.
— Doutor, desculpe não tê-lo avisado antes. Sabe como são essas coisas. Uma correria: liberar corpo no IML, correr atrás de funerária, avisar todos os parentes e amigos, cuidar do enterro, fretar ônibus, comprar flores, coroas, escolher cemitério, ver jazigo, colocar anuncio em obituário de jornal, marcar com antecedência a missa de sétimo dia, uma loucura!
— Estou pasmo, dona Líliam. Fiquei realmente sem saber o que lhe dizer…
— Pois é. O senhor que é médico ficou assim, assombrado, praticamente sem saída. Imagina como estamos nós que convivíamos diariamente com ele. E todo o resto da família. Completam sete dias, amanhã. A propósito, gostaria que o senhor viesse para a missa. Vai ser na Igreja de Nossa Senhora das Cabeças, na Rua Belizário Pena, ali na Penha.
— Farei o possível. De qualquer forma, minhas sinceras condolências.
— Obrigada, doutor.
— Por favor, esclareça uma dúvida, dona Líliam. Panetôncio morreu… Morreu de quê?
— Foi devorado por um jacaré que estava escondido debaixo da cama dentro do nosso próprio quarto.
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras. Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas. Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.
Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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