04 junho 2025

João Gilberto Noll (Dois Ingressos)


“DOIS INGRESSOS”, Pedi me abaixando um pouco, espiando as tristes feições que me atendiam. Sabia que eu estava absolutamente sozinho, mas não me contive, repeti: “Dois ingressos”. Na verdade não me importava com o filme em cartaz. Apenas deixei que o vento batesse no que me restava de cabelo, e fiquei ali, esperando que a moça me entregasse os bilhetes para o filme sobre o qual eu nem vagamente ouvira falar. Uma criança, claro, me puxava pela calça para que eu comprasse suas pastilhas de hortelã. Dizem que na eternidade todas as coisas vão se conectar umas às outras sem que nenhuma pese demais, ou seja, sem que nada chame muito a atenção sobre si para que tudo possa se encadear indefinidamente, um papo assim. Pois foi nisso que fui pensar no momento em que aguardava os bilhetes. A criança vendedora de pastilhas já não estava por ali.

Entrei. Dormi. Acordei com o filme pelo meio. Dois corpos se beijavam dentro de um carro. Depois uma batalha esquisita entrava. Numa época anterior à possibilidade histórica de um carro. Depois… depois uma sombra azeitonada cochichava ao meu ouvido um torvelinho de sílabas com uma fenda voraz em certo trecho de toda a confusão; cochichava o que não sou doido de reproduzir, pois venho desenhando em mim um homem com a mania férrea de se manter na mansidão do que pensa aparentar. Mas… mas em que ponto mesmo eu ia tocar?

Ah, precisava dormir um pouco mais. A música na tela era um tanto militar, como se saísse de um tranco de guerra, de algo que de sonífero tinha apenas um instrumento calado, constantemente a postos, preparado para entrar…

Aliás, o que eu queria mesmo era só uma pausa momentânea diante de tanta erupção sem a guarda dos fatos… Compreende ou prefere se afastar? Mas espera!, espera… O que eu queria era voltar a antes da sessão, eu com as mãos sobre o mármore frio da bilheteria, pedindo calmamente dois ingressos em plena vigência de uma sesta impossível, com aquela baboseira sobre o rigor da eternidade na cabeça, lembro… Duas, duas e meia da tarde… Ah, não sei por que volto ao plano inicial na calçada, em frente ao orifício por onde a mão passava com o dinheiro e voltava com as entradas; só sei, vocês verão, que não tenho aonde chegar – é isso… Então me levantei, fui ao banheiro do cinema.

Exatamente assim: me levantei, fui ao banheiro do cinema, justamente nessa ordem quase demencial ao panorama da hora, e soube pelo espelho que eu caçoava de mim. Língua, dentes, orelhas, tudo, tudo já não se continha em si, já expunha um outro mundo onde criaturas como ele… ele, ele sim, esse que se olhava no espelho de um cinema sujo e malcheiroso, esse que nunca ninguém mais viu, inclusive eu, se eu ainda fosse um pronome utilizável aqui onde já nem me encontro – mas calma!, pois eu dizia… dizia que inclusive eu de fato nunca mais vira aquele homem que se olhava no espelho do banheiro do cinema, a reparar que toda aquela massa orgânica até então coesa já caçoava irremediavelmente de sua própria pele, de seu próprio desconsolo até, uma vez que o tal desconsolo já não tinha realidade que o pudesse sustentar, sustentar para na primeira oportunidade poder eliminá-lo num afago quem sabe, num beijo de morte talvez, enfim!, deixa pra lá…

“Dois ingressos”, repeti. “Dois ingressos”, murmurei o mantra esfarrapado saindo do cinema – ali, bem ali naquela esquina onde eu já não podia estar…
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João Gilberto Noll (Porto Alegre/RS, 1946 – 2017) foi um escritor brasileiro, vencedor de sete prêmios Jabuti. Seu nome foi incluído entre os maiores escritores brasileiros vivos em uma enquete com especialistas realizada pelo Correio Braziliense em 2013. Cursou Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde foi colega de Caio Fernando Abreu, porém concluiu os estudos na Faculdade Notre Dame do Rio de Janeiro. Nesta cidade trabalhou como jornalista e, em São Paulo, como revisor. Em 1980 publicou o livro de contos O cego e a dançarina, pelo qual recebeu diversos prêmios, tais como Revelação do ano, da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), Ficção do ano, do Instituto Nacional do Livro, e o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro. Um dos contos desse livro, "Alguma coisa urgentemente", foi adaptado em 1983 pelo cineasta Murilo Salles sob o título Nunca fomos tão felizes. Harmada, sob direção de Maurice Capovilla em 2003, e Hotel Atlântico, direção de Suzana Amaral em 2009, também foram adaptados para o cinema. Em 1992 escreveu o primeiro texto para teatro, Quero Sim, dirigido por Marcos Barreto. Noll também foi selecionado para figurar no livro Os cem melhores contos brasileiros do século, em 2000. Seu livro Harmada, de 1993, integra a lista 100 livros essenciais da literatura brasileira elaborada pela revista Bravo!. Foi bolsista e professor convidado da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos. Também foi escritor residente no King's College, em Londres, em 2004. A partir de sua experiência na Inglaterra, escreveu o livro Lorde.

Fontes:
Revista Cult. Junho de 2001. p.26 (Ficção Cult)
Imagem = http://www.devirada.com.br

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