Daqui a umas largas dezenas de anos, quem for amigo de ler crônicas deste século XX, que despontou com aspirações de paz universal e bondades aperfeiçoadoras do coração humano, poderá dizer que nestes dias houve um rei, que por amor da sua dama quebrou as mais rijas lanças. Para conquistá-la, expulsou ele o seu real pai e senhor, deportando-o para fora do reino, onde o mísero morreu sem amigos, no desamparo da ingratidão… Para colher dos lábios dela a cheirosa flor do beijo, houve o rei de arcar com a basta chusma dos preconceitos da época. A pobre não era de sangue real, e por isso, mal estimada pelos súditos da enfeitiçada majestade, todos se opunham a que o rei se unisse àquela mulher, que nem era moça como Julieta, nem era portadora de um título de princesa, como Cordélia.
Por sua parte a imprudente, fascinada pelo prestígio daquele homem, caminhava para ele como a fina agulha de aço para um grande pedaço de imã. As mulheres não se emendam, e tanto mais amam quanto menos devem amar. Com o perigo, aumentava o encanto da paixão. Não amar, quando se recebeu do céu uma alma feita para o amor, é privar-se, a si e a outrem, de uma grande felicidade. Seria como uma laranjeira que não florescesse com medo de pecar, — como dizia Stendhal, um escritor de então… É verdade que em páginas adiante ele acrescentava, em outras conclusões: a firmeza de que resiste ao seu amor, é a coisa mais admirável que pode existir na terra; todas as outras provas possíveis de coragem são bagatelas ao pé desta, tão forte e tão penosa.
Raciocinando a dama que esses heroísmos são bons para os livros, e que, sendo a missão da mulher obedecer à natureza, mais lhe concebia a alegoria da laranjeira, assim fez, como devia, a vontade ao seu sentimento e ao seu rei: casou com ele.
Desditosa! O povo, que já não a via com bons olhos, entrou a aborrecê-la. Para que todas as antipatias chovessem sobre a sua cabeça fraca, o velho rei exilado, homem que fora sempre de amores efêmeros e costumes fáceis, morreu longe da pátria, e logo começaram a dizer que ele se finara de paixão, ressentido daquele filho ingrato, e que a culpada de tudo era a rainha, que por não ser de estirpe real não devia merecer o amor de um rei. Teceram logo uma trama de enredos e falsidades, dizendo que ela mentia à sua religião e à sua consciência. O beijo do amor não a fecundara, e na sua murcha esterilidade ela divulgava um sonho que embevecia a corte e o rei. O sonho da maternidade.
Gente do palácio, muito embusteira, inventou logo que a rainha simularia um parto, vindo uma criança estranha ocupar no berço principesco o lugar que só deveria competir ao filho do soberano… Intriga foi esta que se espalhou por toda a nação e transbordou para países alheios e terras de além mar. E, como formiguinhas, iam as perfídias entrando pelos ouvidos do rei…
No seu grande palácio suntuoso vivia a mísera rainha desconfiada, sem se poder lavar das máculas que lhe atribuíam. Assim, a flor da sua beleza outoniça enlanguescia, e o rei, aturdido, cheio das queixas dos vassalos, que lamentavam a morte de um rei que nunca tinham amado, só por acinte à rainha intrusa, caiu em acreditar que a esposa só o quisera por vaidade e ambição de reinar. Por isso, quanto mais ela se debulhava em pranto, mais ele se enfastiava dela, que sempre as lágrimas foram causa de aborrecimento aos olhos dos maridos. Todo o seu grande afeto se tornou depressa em ojeriza que também do pai naturalmente herdara uma certa inconstância no amor: e ver sempre os mesmos olhos, de mais a mais queixosos, não lhe sabia bem.
Correram meses nesse desagrado, até que um dia, em pleno palácio, a macia e régia mão de um rei da culta Europa caiu com bruteza sobre a pálida face de uma rainha.
No triunfo da alegria correram damas de honra e fiéis criados de el-rei a soprar aos quatro ventos aquela ignomínia, rindo da triste rainha ofendida.
Esta, humilhada, quis matar-se; mas não a deixaram acabar com a vida, guardando-a dia e noite de perto, com os olhos arregalados e as unhas afiadas.
Os vendavais desnudam as mais floridas laranjeiras; a alma da rainha já não tinha perfumes, só tinha espinhos; e o rei, por onde andasse, lá ouvia o eco das canções maliciosas das ruas e dos teatros, em que se dizia a aventura de uma mulher que só se unira a um rei pela vaidade e o desejo de reinar…
Entendiam no século XX que o Amor devia viver encarcerado, e ainda com muitos selos nas portas e nas janelas gradeadas, que lhe atestassem a legalidade.
De modo que, quando cansado da reclusão, ele quisesse fugir, teria de debater-se e deixar na cadeia o sangue de seu corpo e as penas de suas asas.
Ele arrependido, ela resignada, parecia até que tinham voltado a amar-se, foram uma alta noite surpreendidos no seu castelo por uma imensa horda de assassinos, que arrombando portas, derrubando sentinelas, alcançou-os a ambos e os matou sem dó…
Não fosse ele fraco; não fosse ela ambiciosa…
Dirá mais coisas a lenda do rei da Sérvia, tratando com injustiça a pobre Draga, sua mulher, só porque não tinha nas veias sangue real.
Outra lenda, sua contemporânea, provará daqui a uma centena de anos, que as mulheres, mesmo rainhas, não tinham no começo deste século XX as prerrogativas que hão de ter então. Esta será talvez em forma de balada. Uma soberana moça, de perfil doce, elevando ao seu trono um príncipe estrangeiro, recebeu dele a mesma injúria que a pobre Draga, do seu real senhor! Somente, à dor da linda Guilhermina acudiu chorando todo o seu povo. Enquanto que à outra…
O que pensarem deste nosso tempo os futuros comentadores da história, parecer-se-á de perto com o que pensamos das velhas idades, em que esposos ciumentos prendiam pelas tranças ao ferrolho dos seus castelos as esposas ultrajadas pelo seu ciúme.
E então, como hoje, a queixa ouvida e que perdure pela sua sinceridade, será a exalada pelos lábios femininos…
Michelet, que tão bem penetrou no coração da mulher, escreveu em L’Amour:
“Os insetos e os peixes são mudos; o pássaro canta, querendo articular; o homem tem a linguagem distinta, a palavra clara e luminosa, o verbo límpido. Mas a mulher, acima do verbo do homem e do canto do pássaro, tem uma linguagem mágica com que intercala esse verbo ou esse canto; o anhelo, o suspiro apaixonado.”
Feita para o amor, ela é o ser mais sensível do universo. Toda ela vibra às blandícias ou às crueldades daquele que entre todos os homens escolheu e a quem não sabe fazer compreender a sua paixão, porque as suas expressões são apenas balbucios com que interrompe os gorjeios da sua alegria ou os temores do seu raciocínio. Ele, que passa, pune, mata ou esquece; que olha para ela como o jequitibá para a roseira, do alto da sua superioridade e da sua grandeza, não percebe que, na sua humildade doce, a voz da mulher, como o perfume das rosas, pode chegar muito mais alto, até ao céu, que só se abre para a sinceridade dos sentimentos grandes e verdadeiros!
E é por não a compreender que ainda um ou outro a brutaliza.
Ainda não há muitos anos uma pobre rainha asiática sentiu no rosto a pesada valentia da mão de seu marido. Como no palácio da Servia, o mesmo alvoroço no da China.
A pressa com que o telégrafo anuncia ao mundo estas misérias!
Mas o que não deixaram fazer a Draga, consentiram que fizesse a imperatriz chinesa. Matou-se.
Afigura-se-nos que uma imperatriz, mesmo da China, deve olhar para todo o seu povo, não com a doçura com que um pastor olha pai a o seu rebanho, mas com fria altivez e soberana indiferença. Ela está ali, no trono brilhante e forte, para que a vejam e para que a amem. Não querendo deixar penetrar os seus pensamentos, torna-se impassível e austera; sentindo em cada beijo a baba da adulação, começa a desgostar-se da humanidade e a ter repugnância dos cortesãos mentirosos. Os seus pensamentos devem ser estranhos, bem analisados, sentidos com inteligência.
Nós não compreendemos as rainhas senão assim. Uma imperatriz que ame o marido, que discuta com vivacidade, que o censure com paixão, e que (santo e misericordioso Deus, como isto até custa a escrever!) leve dele pancada… Uma rainha que, em vez do cinismo de salvaguardar aparências para que o seu povo a julgue invulnerável, encontra rancor no peito e sangue vivo nas veias, para acabar com a vida, vingando a ofensa recebida, é digna de figurar na galeria feminina dos últimos tempos, como um dos mais interessantes tipos de mulher.
A verdade é que não é suportável a ideia de que um homem, seja ele quem for, possa levantar a mão para uma mulher, seja ela quem for também.
Se ele se julga e se proclama o forte, o senhor dominador e poderoso, deve encontrar na palavra todo o fel da censura, sem se rebaixar num aviltamento que o amesquinha. É melhor matar do que bater. Uma mulher apunhalada poderá perdoar, mas uma mulher esbofeteada, nunca!
Lã ficará sempre o ressentimento, quando não fique imediatamente o nojo, ou não haja a coragem da vingança.
Dizem por aí que as mulheres que apanham pancada são as que mais amam… Não acrediteis! A mulher descida a essa ignomínia é incapaz de tudo. É preciso que se compreenda bem, que afinal de contas os mesmos ramos de veias que fazem circular no corpo do homem o sangue que os altera, fazem nascer na mulher os mesmos desejos, as mesmas violências. Somos mais tenazes, talvez, mais frias no amor, mas mais excessivas no ódio.
O exemplo do imperador da China levou tempo a medrar, mas medrou e desponta na velha Europa civilizada, em velhos tronos de ouro e púrpura, que dão norma ao povo, como uma lei de justiça e um direito da força indiscutível.
Dizem que a mulher do povo gosta do amor cruel, que a brutalize; se assim é, que bons maridos e que magníficos trabalhadores de enxada se perderam naqueles régios senhores coroados!
Baladas e lendas destas rainhas, nossas contemporâneas, atrairão a magoada simpatia de outras mulheres que, chegado o tempo do amor, do céu azul e do sol dourado, se vejam, como laranjeiras floridas, cobertas de ilusões!
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JÚLIA VALENTIM DA SILVEIRA LOPES DE ALMEIDA, nasceu em 1862 no Rio de Janeiro e morreu em 1934 na mesma cidade. Passou parte da infância em Campinas - SP. Seu primeiro livro - Traços e Iluminuras - foi publicado aos 24 anos, em Lisboa. Antes disso já publicara artigos na imprensa, tendo sido uma das primeiras mulheres a escrever para jornais. Com uma linguagem leve, simples, cativou seu público: escreveu e publicou mais de 40 volumes entre romances, contos, narrativas, literatura infantil, crônicas e artigos. Foi abolicionista e republicana além de mostrar, em suas obras, ideias feministas e ecológicas. Contista, romancista, cronista, teatróloga. Fez conferências e colaborou em vários periódicos do Rio de Janeiro e de São Paulo, entre eles Gazeta de Notícias, Jornal do Comércio, Ilustração Brasileira, A Semana, O País, Tribunal Liberal. Casou com o poeta e teatrólogo português Filinto de Almeida, com quem dividiu a autoria do romance A casa verde. Ocupou a cadeira nº 26 da Academia Carioca de Letras. Em seu livro A árvore (1916), defende com rigor o ambiente natural, afirmando que "cortar uma árvore é estrangular um nervo do planeta em que vivemos", preocupação inusitada para a sua época. Seus filhos Afonso Lopes de Almeida, Albano Lopes de Almeida e Margarida Lopes de Almeida também se tornaram escritores.
Fontes:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA)
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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