04 maio 2025

Luís Fernando Veríssimo (O Flagelo do Vestibular)


Não tenho curso superior. O que eu sei foi a vida que em ensinou, e como eu não prestava muita atenção e faltava muito, aprendi pouco. Sei o essencial, que é amarrar os sapatos, algumas tabuadas e como distinguir um bom beaujolais pelo rótulo. E tenho um certo jeito – como comprova este exemplo – para usar frases entre travessões, o que me garante o sustento. No caso de alguma dúvida maior, recorro ao bom senso. Que sempre me responde da mesma maneira: “Olha na enciclopédia pô!”

Este naco da autobiografia é apenas para dizer que nunca tive que passar pelo martírio de um vestibular. É uma experiência que jamais vou ter, como a dor do parto. Mas isso não impede que todos os anos, por essa época, eu sofra com o padecimento de amigos que se submetem à terrível prova, ou até de estranhos que vejo pelos jornais chegando um minuto atrasados, tendo insolações e tonturas, roendo metade do lápis durante o exame e no fim olhando para o infinito com aquele ar de sobrevivente da Marcha da Morte de Batan. Enfim, os flagelados do unificado. Só lhes posso oferecer a minha simpatia. Como ofereci a uma conhecida nossa que este ano esteve no inferno.

– Calma, calma. Você pode parar de roer as unhas. O pior já passou.

– Não consigo. Vou levar duas semanas para me acalmar.

– Bom, então roa as suas próprias unhas. Essas são as minhas.

– Ah, desculpe. Foi terrível. A incerteza, as noites sem sono. Eu estava de um jeito que até calmante me excitava, e quando conseguia dormir sonhava com escolhas múltiplas:

A) fracasso,
B) vexame,
C) desilusão

E acordava gritando: Nenhuma destas, nenhuma destas. Foi horrível.

– Só não compreendo porque você inventou de fazer vestibular a esta altura da vida…

– Mas quem é que fez vestibular? Foi meu filho! E o cretino está na praia, enquanto eu fico aqui, à beira do colapso.

Mãe de vestibulando. Os casos mais dolorosos. O inconsciente do filho às vezes nem tá: diz pra coroa que cravou coluna do meio em tudo e está matematicamente garantido. E ela ali, desdobrando fila por fila o gabarito. Não haveria um jeito mais humano de fazer a seleção para as universidades? Por exemplo, largar todos os candidatos no ponto mais remoto da floresta amazônica e os que voltassem à civilização estariam automaticamente classificados? Afinal, o Brasil precisa de desbravadores. E as mães dos reprovados, quando indagadas sobre a sorte do filho, poderiam enxugar uma lágrima e dizer com altivez:

– Ele foi um dos que não voltaram…

Em vez de:

– É um burro!

Os candidatos à Engenharia no Rio de Janeiro poderiam ser postos a trabalhar no Metrô dia e noite, quem pedisse água seria desclassificado. O Estado acabaria com poucos engenheiros novos - aliás, uma segurança para a população – mas as obras do Metrô progrediriam como nunca. Na direção errada, mas que diabo!

O certo é que do jeito que está não pode continuar. E ainda por cima, há os cursinhos pré-vestibulares. Em São Paulo os cursinhos estão usando helicópteros na guerra pela preferência dos vestibulandos que terão que repetir tudo no ano que vem. Daí para napalm, o bombardeio estratégico, o desembarque anfíbio e, pior, uma visita do Kissinger para negociar a paz, é um pulo. Em São Paulo há cursinhos tão grandes que o professor, para se comunicar com as filas de trás, tem que usar o correio. Se todos os alunos de cursinhos no centro de São Paulo saíssem para rua ao mesmo tempo, ia ter gente caindo no mar em Santos. O vestibular virou indústria. E os robôs que saem das usinas pré-vestibulares só tem dois movimentos: marcar cruzinha e rezar.

O filho da nossa nervosa amiga chegou em casa meio pessimista com uma das suas provas:

– Sei não. Acho que tubulei. O Inglês não estava mole.

– Mas meu filho, hoje não era inglês! Era Física e Matemática!

– Oba! Então acho que fui bem!

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LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO é um escritor, humorista, cartunista, tradutor, roteirista, dramaturgo e romancista brasileiro. Conhecido por suas crônicas de humor e sátiras de costumes, publicadas em diversos jornais e revistas, também se destacou como autor de romances, contos e quadrinhos. Sua obra é caracterizada pelo uso da ironia e do humor para abordar temas sociais e cotidianos. Nascido em Porto Alegre/RS em 1936, foi criado em uma família com forte influência literária, sendo filho de Érico Veríssimo, um dos maiores escritores brasileiros. Alfabetizado e com o ensino médio cursado nos Estados Unidos, onde sua família residiu por algum tempo devido ao trabalho de seu pai. Trabalhou como jornalista, tradutor, redator publicitário, músico e, principalmente, como escritor, cronista e cartunista. É um dos autores mais populares do Brasil, com mais de 80 títulos publicados e traduzido para diversos países. Suas obras mais famosas incluem "O Analista de Bagé", "Comédias da Vida Privada" e "O Clube dos Anjos". Criou personagens emblemáticos como a Velhinha de Taubaté, Ed Mort e As Cobras, que se tornaram ícones da cultura popular brasileira. Recebeu diversos prêmios literários, incluindo o Prêmio Juca Pato e a distinção de Intelectual do Ano pela União Brasileira de Escritores (UBE). 
Sua obra é marcada pela utilização do humor, da ironia e da crítica social para abordar temas do cotidiano e da sociedade brasileira. Utiliza uma linguagem acessível e inteligente, que consegue transmitir mensagens complexas de forma leve e divertida. Suas crônicas e charges são amplamente reconhecidas pela sua capacidade de retratar a vida urbana, os costumes e as nuances do comportamento humano. Também se destacou como romancista e contista, explorando diferentes temas e abordagens em suas obras. É considerado um dos maiores cronistas e humoristas da literatura brasileira contemporânea, deixando um legado de personagens e histórias que continuam a encantar leitores de todas as idades.

Fontes:
Luís Fernando Veríssimo. Ed Mort e outras histórias. Publicado em 1979.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

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