17 maio 2025

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Justiça


Íamos hoje para a cidade na marcha habitual, nem muito rápida, nem propriamente vagarosa. Circunstância notável, se bem que ordinária -o bonde não correu nem por um instante fora dos trilhos. Entretanto, chocou de repente com um automóvel, e surgiu uma grande discussão a respeito de se saber a quem tocava a culpa, se ao motorista do automóvel, se ao motorneiro*.

Entrou em função o juiz que há dentro de cada indivíduo, e as sentenças divergiam.

-“Foi esse negrinho estúpido,” dizia um, indigitando o motorneiro.

-“O culpado é esse louco desse portuga,” asseverava outro, referindo-se ao motorista.

-“Cadeia com eles, é o que eu vivo a dizer.”

-“Qual! só a pau.”

-“Por milagre não houve coisa muito pior: olhe como ficou a máquina.”

-“Foi pena que não ficasse ainda mais escangalhada, era menos uma.”

-“Mas o bonde podia bem ter parado a tempo.”

-“Não podia, aqui é um declive.”

-“Seu guarda, o culpado é o motorista.”

-“Não, seu guarda, o culpado é o motorneiro.”

E cada juiz era também um partidário, ou do lado do homem do bonde, ou do lado do homem do automóvel. Por simpatia física, por espírito de nacionalidade ou de raça, por disposição mais favorável a uma das classes de automedontes, por ter ou não automóvel, por ter ou não ter um parente motorneiro ou automobilista, por mero palpite, cada um propendeu imediatamente para uma das bandas.

Mas, valha a verdade, havia também homens imparciais, por exceção. Um destes, abanando a cabeça, e afastando-se do burburinho, me ponderou tranquilamente:

-“Ora, ora! Quem foi, quem não foi… Eu o que fazia era pegar nos dois e socá-los no xilindró: é aí, seus danados! Esta corja…”
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* Motorneiro = condutor ou chofer do bonde.
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AMADEU ATALIBA ARRUDA AMARAL LEITE PENTEADO, poeta, folclorista, filólogo e ensaísta, nasceu em Capivari, SP, em 1875, e faleceu em São Paulo, SP, em 1929. Aos onze anos foi para São Paulo para trabalhar no comércio e estudar. Autodidata, não concluiu o curso secundário. Ingressou no jornalismo, trabalhando no Correio Paulistano e em O Estado de S. Paulo. Em 1922 transferiu-se para o Rio de Janeiro como secretário da Gazeta de Notícias. Do Rio mandava para O Estado de S. Paulo a crônica diária “Bilhetes do Rio”. Voltando a São Paulo exerceu cargos na administração pública. Autodidata, surpreendeu a todos por sua extraordinária erudição, num tempo em que não havia, em São Paulo, as universidades e cursos especializados. Dedicou-se aos estudos folclóricos e, sobretudo, à dialectologia. No Brasil, foi o primeiro a estudar cientificamente um dialeto regional. “Dialeto caipira”, publicado em 1920, escrito à luz da Linguística, estuda o linguajar do caipira paulista da área do vale do rio Paraíba, analisando suas formas e esmiuçando-lhe o vocabulário. Visando à formação dos jovens, assim como Bilac incentivara o serviço militar, Amadeu Amaral procurou divulgar o escotismo, que produziu frutos no país. Sua poesia enquadra-se na fase pós-parnasiana, das duas primeiras décadas do século XX. Como poeta, destacou-se pelo desejo de contribuir, com suas obras, para a elevação de seus semelhantes. Por ocasião do VI centenário da morte de Dante, proferiu, no Teatro Municipal de São Paulo, uma conferência, enfatizando justamente os aspectos de Dante que exaltam a elevação do espírito humano através da Sabedoria. Segundo ocupante da cadeira 15, foi eleito em 1919, na sucessão de Olavo Bilac.

Fontes:
Amadeu Amaral. Memorial de Um Passageiro de Bonde. Disponível em Domínio Público.  
Biografia obtida na Academia Brasileira de Letras.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

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