15 maio 2025

Nilto Maciel (Da Bola de Meia ao Rádio)


As casas me pareciam enormes, tetos muito altos, chão de tijolo. Quando chovia ou o sol esquentava demais, brincávamos de bola na sala ou nos quartos. Os chutes desajeitados levavam a bola para o forro de pano. E nem adiantava cutucá-lo com vara. Nunca mais a veríamos. A não ser quando algum pedreiro ou pintor fosse trabalhar, levasse escada e atendesse nossos rogos. Ou quando papai resolvesse trocar o forro. Mesmo assim, as bolas estariam endurecidas, mofadas, rasgadas.

Mamãe tinha horror a bolas. Menos aquelas das cartilhas. Mas como viver sempre estudando? Se tirávamos notas baixas, três dias sem bola e sem bila. Ou três dias lendo bulas. No quintal não havia lugar para jogos e brincadeiras. Somente árvores, plantas e animais domésticos. O gato caçava borboletas, ratos e passarinhos, a correr e saltar entre as bananeiras. Sumia, voltava, miava, brincava, desaparecia de novo ou para sempre. Até aparecer outro e ser adotado por nós. Um deles, Mimi, viveu muitos anos. Preto, olhos verdes, sapeca. Arranhava as bananeiras, dormia debaixo das árvores, escondia-se atrás das moitas, perdia-se por dias e dias, reaparecia a miar, faminto. Os porcos roncavam no meio da lama. As lagartas infestavam a horta.

Poucos meninos conheciam bolas de couro. Em compensação, todos tinham “bolas-de-meia” ou “bolas-de-pano”. Meia usada, furada, imprestável para o uso apropriado. O recheio podia ser de algodão, pano ou papel. Essas bolas não serviam para jogos em chão de terra. E menos ainda em dias de chuva. Jogava-se nas calçadas. Quando não o futebol, os simples chutes de um lado para outro. As paredes serviam de anteparo e ao mesmo tempo de linhas de gol. Às vezes dois jogadores de cada lado. Um chute para cada “time”. Vencia quem fizesse primeiro determinado número de gols. Ao vencedor cabia, como “castigo”, jogar, em seguida, com outro “time” ou jogador. Eu conseguia ser um dos melhores nos chutes e nas defesas. Saltava, quase voava, em busca da bola. Os outros me elogiavam. E eu me enchia de amor-próprio. Sim, quando me tornasse rapaz, iria jogar no Fortaleza. Por muito tempo sonhei ser goleiro profissional. O sonho, no entanto, cedo se desfez, e de forma melancólica. Convidado para treinar num time de futebol de salão, logo no primeiro jogo perdemos por larga margem de gols. Um fracasso! Chamaram-me de frangueiro, e nunca mais me convidaram a entrar no pequeno estádio.

Frustrado com o meu futebol, deixei o campo e me postei na plateia. De ator passei a espectador. Dediquei-me a recortar fotos de jogadores e times dos jornais e das revistas, principalmente O Cruzeiro. Recortava as “figuras” e colava num caderno velho. Dos futebolistas passei a atrizes de cinema, animais, carros, aviões, cidades.

No colégio dos padres salesianos havia um “muro” a separar os alunos internos dos externos. Aqueles vinham de outras cidades, sobretudo de Fortaleza. De famílias ricas. Nós, os da cidade, éramos quase todos pobres, filhos de comerciantes locais, como eu e meu irmão Edinardo, de funcionários públicos, etc. Nunca os dois lados se misturavam. Brincavam em pátios separados. Até na igreja, construção contígua ao colégio, a separação se manifestava. Os bancos destinados aos internos se situavam na parte mais próxima do altar. Apesar disso, fomos convidados a participar das brincadeiras e jogos de fim-de-semana no colégio. Entrávamos por um portão pequeno, que ia dar numa escolinha para crianças carentes, moradoras da periferia, como Potiú e Lages. Havia muitas mangueiras e o rio corria bem próximo a uma cerca. Os internos jogavam futebol num campo grande, com traves, rede, uniformes, chuteiras, bola de couro. Nós ficávamos ao largo, chutando uma bolinha ou outra, junto aos meninos mais pobres. A bola me pareceu excessivamente pesada. Nunca havia chutado uma bola de couro. Meus pés só conheciam as bolinhas de meia. O capim molhado e alto me feria os dedos.

O primeiro rádio em nossa casa chegou muito tarde. Depois da Copa da Suécia. Posto sobre uma mesa na sala de estar, imperava imponente no meio da pouca mobília. Media mais de meio metro. Cheio de válvulas, esquentava feito um forno. Passou a ser meu entretenimento predileto à noite. Rodava o botão para lá e para cá, à cata de novidades, músicas, notícias e jogos de futebol. Anotava tudo: nomes dos times e jogadores do Rio, de São Paulo e da Europa. Decorava e copiava letras de músicas. Quando todos iam dormir, eu continuava a manejar os botões do rádio. Mamãe se aborrecia: fosse dormir, desligasse o aparelho. Eu abaixava o volume e aproximava da tela do alto-falante um ouvido. No entanto, as ondas iam e vinham em descompasso, e ora se tornavam inaudíveis, ora cresciam.
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Nilto Maciel nasceu em Baturité/CE em 1945. Formou-se na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Em parceria com outros escritores, no ano de 1976 criou a revista Saco. Transferiu-se no ano seguinte para Brasília, trabalhando na Câmara dos Deputados, Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Justiça do DF. Em 2002 foi para Fortaleza/CE onde residiu até a sua morte em 2014. Venceu inúmeros concursos literários, e escreveu diversos livros, tendo contos e poemas publicados em esperanto, espanhol, italiano e francês. Além de contos e romances publicados, também Panorama do Conto Cearense, Contistas do Ceará, Literatura Fantástica no Brasil. Alguns livros publicados: Contos Reunidos vol. I, são os 66 contos escritos por Nilto em seus livros Itinerário (1974 a 1990), Tempos de Mula Preta (1981 a 2000) e Punhalzinho cravado de ódio (1986). O volume II conta com 122 contos dos livros As Insolentes patas do cão (1991), Babel (1997) e Pescoço de Girafa na Poeira (1999). 
“Nilto possui esta capacidade de fazer com que nossas almas percorram desde um estado de profunda tristeza ao de êxtase. Não é apenas um escritor, são muitos escritores dentro de um só. A cada conto terminado, aflora o anseio pelo próximo. Aonde Nilto nos conduzirá agora? Cada conto é um conto, que faz com que nossa imaginação nos leve às vezes a adentrar dentro dele e participar, deixando que nos levemos pelo seu encanto, pela sua linguagem simples e deliciosa.” (José Feldman, em Nilto Maciel o mago das almas, 18/12/2010)

Fontes: 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

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