A majestade daquela lua enorme, exageradamente iluminada, não combinava, em absoluto, com o nebuloso astral daquele homem abatido à procura de um jeito honroso para retorno ao lar.
O dia fora terrível! O almoço, desastroso! Homem e mulher, se por uma balela qualquer se desentendem, a cada palavra cavam cada vez mais fundo o abismo que os separa, envolvidos pela avalanche verborrágica, que enrola razões, manipula argumentos, inflama egos e espicaça vaidades, na tentativa insana, de provar quem de fato é o dono da verdade.
Em poucos minutos, aquele casal, até ali tão unido, escorregara do éden conjugal para o inferno dantesco das acusações mútuas.
Lágrimas enxugadas na barra do avental e a batida violenta da porta, foram mais que convincentes para provar que o primeiro round estava findo, mas a luta , não.
Mirna empilhou os pratos sobre a mesa, transportando os copos para a pia, sem conseguir evitar que um deles se espatifasse a seus pés. Catou os cacos resignada. Era o primeiro copo quebrado, daquele bonito jogo azul, bico de jaca, presente de casamento da tia Júlia. Gostava dos copos. E mais ainda, da tia. Contudo, a dor que lhe doía no peito era tão forte que nem sentiu a perda. Com raiva, atirou os cacos na lata de lixo.
Largou-se em seguida na cama, soluçando desconsolada. Algum tempo depois, socava o travesseiro, como quem socasse a cara do marido desaforado…
De volta à pia, filosofava: – Por quê são os homens tão incompreensíveis?! Tão intransigentes, a ponto de comprometerem um diálogo sadio… um acerto de opiniões, uma análise de pontos de vista capazes de levar ao consenso ou, quem sabe, à discordância, já que nem sempre duas cabeças pensam de forma igual. Sempre cheios de razão …incapazes de admitir um erro… dar a mão à palmatória… E, que fácil seria dizer: – “Desta vez, errei, querida” . Até que aquele querida poderia ser dispensado. Bastaria dizer: – Errei, pronto! Perdoa, sim? – Claro que, depois disso, tudo terminaria bem. Qualquer mulher, mesmo entre raios e trovoadas, agiria assim, com aceitação… com naturalidade. Mas, qual deles à beira de uma tempestade, pensaria em valer-se do guarda-chuva do perdão, mesmo sabendo ser, essa. a única solução?
A esponja da filosofia, ajudou… e a louça foi lavada com requinte. A cozinha, arrumada, ganhou ares de cozinha de revista. Na fruteira, o brilho das frutas foi despertado pela flanela, em lustro vigoroso. As maçãs ficaram mais rubras, apetitosas. A raiva da moça exagerou no esfregão, a ponto de machucar uma delas.
Precisava ficar mais calma. Nenhum homem merecia uma lágrima de mulher – isso lhe dissera tantas vezes a mãe – pobre mãezinha, quantas vezes a vira chorar em silêncio!
O chuveiro lavou-lhe corpo e alma. Maquiou-se com cuidado e perfumou-se. Nenhum gladiador adentra a arena desarmado. Faltava pouco para o retorno do marido. Retornaria? – Ah… haveria de ouvir poucas e boas!
Dedos nervosos pegaram o tricô e ligaram o televisor. Tempo de novela. Tanto drama em casa e aquela mania tola de imiscuir-se nas tramas televisivas, como se a vida não passasse de histórias somadas entre tapas e beijos… briguinhas e abraços , intrigas e enrolações, quase sempre encaminhadas para um final feliz, a premiar bons e castigar maus. Como se tudo pudesse ser resolvido por toques no teclado de um computador, à disposição dos dedos do autor. Como se aqueles dedos fossem pequenos deuses a tal ponto poderosos que capazes de criar vidas, tecer tramas e alterar destinos, a bel prazer.
Envolta em mágoas, Mirna deixou escapar a malha do tricô e perdeu o fio da novela. Ao ouvido atento, porém, não passou despercebido o torcer da chave na fechadura.
Ele! Sequer virou a cabeça ou desgrudou os olhos do vídeo. O tricô…
Esperava pela primeira palavra, que não veio. A tensão cresceu quando sentiu a aproximação do marido. Teve vontade de encará-lo. Conteve-se. Ele sentou-se no sofá ao seu lado. Tenso e mudo.
O corpo da moça retesou-se, pronto para recomeçar a batalha verbal interrompida.
Relaxou, quando sentiu a cabeça do marido aninhar-se no seu colo, como de costume. E, como de costume, os dedos dela deslizaram mansamente pelos cabelos macios, como que alisando, com a ternura de sempre, o pelo macio de um gato fujão.
Naquela noite, o amor falou tão alto… que nem foi necessária palavra alguma!
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CAROLINA RAMOS nasceu em Santos/SP, em 1924. Dia 19 de março de 2025, comemorou seu 101. aniversário. Desde cedo atraída pelas letras, seus amigos mais chegados eram os livros. Essa preferência aproximou-a das artes e literatura. Na Escola Normal, diplomou-se como Professora e Secretariado.. Completou seus estudos formando-se em música. Fez o curso completo de Música. Vários cursos de Literatura, de Folclore, Línguas e um pequeno Curso de Enfermagem. Leu na adolescência, tudo o que lhe caia nas mãos, desde toda a obra de Machado de Assis, José de Alencar, e outros nacionais e estrangeiros. No ginásio, costumava fazer algumas quadrinhas de pé quebrado. Fez seu primeiro poema quando a filha, Márcia, nasceu, “Se eu soubesse esquecer”. Publicou versos num Suplemento de Arte, do Jornal local, A Tribuna. Possui vários prêmios, no Brasil e alguns no Exterior, de Contos, Poesias, Trovas e Crônicas. Por seu poema, Paz, foi agraciada com Diploma e Medalha de Mérito Internacional, em Nocera - Salerno, Itália. Trovadora, contista, poeta, santista ilustre, foi Presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Santos por oito anos (2001 a 2007) e Presidente da União Brasileira de Trovadores – Seção de Santos. Pertence a diversas entidades culturais, como Academia Santista de Letras, Academia Feminina de Letras, Academia Cristã de Letras de São Paulo, Confraria Brasileira de Letras, e de várias outras Academias de Letras e entidades culturais do Brasil. Agraciada com diversas medalhas de mérito cultural em Santos, com a “Medalha do Sesquicentenário de Santos”, outorgada pela Prefeitura Municipal; “Medalha dos Andradas”, pelo IHG de Santos e “Medalha Brás Cubas”, outorgada pela Câmara de Santos, em 2006”. Recebeu diversos títulos, homenagens e prêmios em Portugal e Angola. Em 2021 o título de "Princesa da Trova" . Em 2023, vencedora do Hino Oficial da Academia Cristã de Letras de São Paulo. Alguns livros publicados:
“Sempre” – (Poesias); “Cantigas Feitas de Sonho” – (Trovas); “Interlúdio” – (Contos); “Paulo Setúbal – Uma Vida Uma Obra” (em parceria c/Cláudio de Cápua); “Júlia Lopes de Almeida” – (Biografia); “Feliz Natal!” – (Contos Natalinos); “Príncipe da Trova” – (Biografia); “Liberdade... Sonho de Todos!” – (Prosa – Poesia – Trova) ; “Destino” - (Poesias); ”Canta...Sabiá!” (Folclore do Brasil); ”Bichos... Bichinhos... e Bichanos...” (livro infantil), entre outros.
Nas palavras de Carolina em entrevista concedida a José Feldman:
“A obra do escritor não tem fronteiras. Não há limites que cerceiem a sua criação, e, muito menos, cronológicos. Mas o escritor não é imune às influências do meio e da época em que vive. Seus escritos bebem a água da inspiração, na fonte que corre perto de seus pés. A voz do escritor incorpora a voz do seu tempo e, automaticamente, através do que escreve, passa a interagir, de acordo, ou não, com a vida que rola à sua volta, e até mesmo contra suas próprias convicções, segundo as exigências da personagem criada. Note-se, que há, sempre, escritores e poetas envolvidos nas grandes causas que o cercam e que acabam por marcar suas existências. É por isso, que podemos afirmar que poetas e escritores, em qualquer tempo ou lugar, são quase sempre ativistas sociais e arautos dos grandes acontecimentos que marcam o seu tempo.”
Fontes:
RAMOS, Carolina. Interlúdio: contos. SP: EditorAção, abril 1993. Enviado pela autora,
Imagem com Microsoft Bing.
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