24 abril 2025

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Uma Rosa


Ganhei uma rosa e uma experiência. Deu-me aquela, no bonde, um homem velho, rude e chambão. Contraiu a afeição das flores já entrado em anos, depois de desenganado de feminilidades há muitos. E eu tinha o amor das flores na conta de um puro reflexo de sentimentos sexuais, de uma ondulação distante do culto da mulher.

De fato o é; mas também pode ser outra coisa, como me prova este velho puído e tristonho, que viu amanhecer em si o encanto das rosas quando já iam muito longe as derradeiras fagulhas do outro amor.

Quem sabe se ele põe agora neste afeto um afã meio inconsciente de recuperar o tempo perdido para o coração? Como quer que seja, revelou-me como a natureza, contra toda lógica e toda expectativa, pode achar saídas novas e elegantes para as situações mais abatidas e ruinosas. Há nela uma capacidade virgem e indefinível de com que não costumam contar os analisadores de almas, que pensam desmontar-lhes as peças como a mecanismos, e não fazem senão jogar com esquemas e conceptos.

Tudo, neste homem, indicaria uma carreira fatal para o embrutecimeno e a prostração. Idade, doenças, decepções, rupturas, arrancamentos, saudades, rancores, desesperança. Devia acabar no desânimo e na tristeza aparvalhada do animal que procura um recanto esquecido para morrer. Pois, nada disso. Viu ainda florir em si, de repente, um novo amor e uma alegria, uma doçura e uma esperança novas. Uma nova forma de ingenuidade fresca e gentil. Uma ressaca de mocidade.

Dir-se-ia que todas as suas mágoas e misérias se haviam convertido numa energia clara e imprevista de nascente gorgolejante Que todo o cisco do seu passado, em montão, a consumir-se ao sol e à chuva, fecundara a terra e dera-lhe sombra e umidade para que brotasse lá em baixo uma semente ignorada, e que a semente se fizera broto, e o broto crescera e atravessara os destroços apodrecidos para vir oferecer à luz a flâmula verde de uma frondezinha viçosa.

A vida vive em nós! Ai, se nos convencêssemos bem de que é a Vida que vive em nós… A Vida, senhora eterna de todas as germinações.
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AMADEU ATALIBA ARRUDA AMARAL LEITE PENTEADO, poeta, folclorista, filólogo e ensaísta, nasceu em Capivari, SP, em 1875, e faleceu em São Paulo, SP, em 1929. Aos onze anos foi para São Paulo para trabalhar no comércio e estudar. Autodidata, não concluiu o curso secundário. Ingressou no jornalismo, trabalhando no Correio Paulistano e em O Estado de S. Paulo. Em 1922 transferiu-se para o Rio de Janeiro como secretário da Gazeta de Notícias. Do Rio mandava para O Estado de S. Paulo a crônica diária “Bilhetes do Rio”. Voltando a São Paulo exerceu cargos na administração pública. Autodidata, surpreendeu a todos por sua extraordinária erudição, num tempo em que não havia, em São Paulo, as universidades e cursos especializados. Dedicou-se aos estudos folclóricos e, sobretudo, à dialectologia. No Brasil, foi o primeiro a estudar cientificamente um dialeto regional. “Dialeto caipira”, publicado em 1920, escrito à luz da Linguística, estuda o linguajar do caipira paulista da área do vale do rio Paraíba, analisando suas formas e esmiuçando-lhe o vocabulário. Visando à formação dos jovens, assim como Bilac incentivara o serviço militar, Amadeu Amaral procurou divulgar o escotismo, que produziu frutos no país. Sua poesia enquadra-se na fase pós-parnasiana, das duas primeiras décadas do século XX. Como poeta, destacou-se pelo desejo de contribuir, com suas obras, para a elevação de seus semelhantes. Por ocasião do VI centenário da morte de Dante, proferiu, no Teatro Municipal de São Paulo, uma conferência, enfatizando justamente os aspectos de Dante que exaltam a elevação do espírito humano através da Sabedoria. Segundo ocupante da cadeira 15, foi eleito em 1919, na sucessão de Olavo Bilac.

Fontes:
Amadeu Amaral. Memorial de Um Passageiro de Bonde. Disponível em Domínio Público.  
Biografia obtida na Academia Brasileira de Letras.

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