12 junho 2025

Walter Galvani (Mal Rompe a Manhã…”)


Por força das circunstâncias e uma longa atividade jornalística, acabei formatando (como diriam os viciados em informática) um estilo que se caracterizava por deitar tarde e levantar tarde. Depois a corrupção de costumes foi completada com o trabalho em um vespertino (sonho e glória de muitos jornalistas, mas hoje quase completamente expurgado do mercado pelo advento das televisões e as confusões do trânsito) que me propiciava a chance de dormir cada vez menos e misturar cada vez mais os horários.

O tempo foi fazendo seus habituais estragos, ventos de mais de cem quilômetros passaram a se tornar presentes em nossas vidas e meus relógios revolutearam também enlouquecidos. Hoje, levanto na hora em que antes ia deitar… E então, depois de um bom café à moda dos hotéis brasileiros, sento-me diante do computador. Tomo conhecimento do correio eletrônico, recebo e respondo as mensagens mais urgentes ou mais caras e começo a dedilhar em busca do primeiro texto ou da continuação do que venho transacionando comigo mesmo.

Como diria o velho e insubstituível Drummond: “A luta com as palavras/ é luta vã/ No entanto lutamos/ mal rompe a manhã!”

Hoje um texto curto, amanhã um artigo para uma revista, depois o romance, ah sim, o romance, desafiador, que ressurge sempre, estocado na memória do computador e que a um simples toque deixa seu esconderijo virtual e perpassa minha tela à espera da continuidade, ou para sofrer pacientemente as retificações. Entusiasmo-me e levo adiante, aproveitando o momento propício que se criou e que se repete todo o santo dia, menos aquele que sou obrigado a excluir para devotá-lo integralmente à incineração diante das necessidades prosaicas de vida bancária ou profissional jornalística, algo que me dá um prazer sofrido e condenado.

Certa vez, perguntaram a Pablo Picasso se ele acreditava em inspiração. “Sim, claro – foi sua resposta imediata. Sempre que ela chega me encontra trabalhando”.

E assim é, como foi hoje mesmo e como será amanhã. Cercado por livros, amigos e necessários apoios, com os dicionários alinhados à minha espera, e as fotos da minha mulher e das minhas filhas, como ícones capazes de me garantirem a tranquilidade, sigo martelando com vigor datilográfico (velhas máquinas Remington e Olivetti) o teclado onde deveria pousar levemente a polpa dos dedos, num exercício de balé eletrônico. Minha digitação acompanha com o seu ritmo o progresso do meu pensamento, que, naturalmente por vezes ultrapassa a velocidade da sua conversão em matéria.

Vá lá, vá lá, ando para trás e para diante, retomo e súbito, um gesto desastrado destrói o que já se acumulava, é preciso recomeçar e eis que o telefone toca.

O recomeço é sempre mais difícil, é como descer um patamar do sonho, é um recuo e aos poucos vou deixando a minha identificação com o voo. Os cães latem. Há uma nova retomada. Agora reviso o que fiz, retoco, reescrevo, ponho a dourar, reservo e estoco no fundo do misterioso computador. Amanhã, quando a manhã começar, descongelo e retomo o ritmo, procurando rapidamente acertar o passo, antes do mergulho.

Durante o restante do dia, viajo. Entrego-me a outras atividades, sinto que preciso fazer algumas anotações, faço exercícios de memória, mas o texto está lá, distante, ainda não o imprimi para que possa senti-lo, cheirá-lo e mostrá-lo quem sabe a alguém que possa perceber o que estou pretendendo dizer e confirmar-me que recebeu a mensagem, totalmente.

Perco minhas lembranças durante o dia, envolvido na movimentação, nos contatos, nos telefonemas, no trabalho e nas leituras. Os jornais, com textos tão dispersos e tão pouco inspiradores, ou os artigos retirados e reservados para leitura posterior. Há, sim, os livros que estão sendo lidos, religiosamente. Salto de um para o outro, vejo pouquíssima televisão, um pouco mais antes de preparar o sono, e diante de mim, outra vez a manhã.

E puxo então novamente da memória do computador o texto que dormiu o sono justo do esquecimento e lá está ele, implacável, a me cobrar a continuidade. Não, hoje não, ainda não está maduro, a digitação só vai perturbar o que está consolidado, mando-o de volta para sua caverna eletrônica.

Quando termino aquela jornada, alinho a nítida impressão de que desperdicei um dia de minha vida e com este sentimento venenoso faço todo o giro habitual, novamente o sono e outra vez o despertar com a expectativa de que, hoje sim, farei ressurgir do poço fundo do esquecimento, em todo o seu esplendor o que estou buscando botar de pé. Vejo e revejo os erros, hoje mais claros do que anteontem. Refaço, registro, faço o salvamento necessário para que seja aproveitado e sigo adiante. Outra vez o mesmo sofrimento, mal rompe a manhã…”

Portanto, de hoje em diante, “nenhum dia sem uma linha”.
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Walter Galvani da Silveira nasceu em Canoas/RS, 1934 e faleceu em Porto Alegre/RS, 2021. Escritor e jornalista. Teve formação autodidata no Jornalismo. Um dos fundadores do jornal Expressão, em Canoas, em 1954. Repórter esportivo do jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, em 1955. Em 1967, se tornou diretor de redação do jornal Folha da Tarde (assim como Correio do Povo). Colunista do jornal guaibense Nova Folha em 2013. Escreveu sobre jornalismo, crônicas, romance histórico, biografia, cultura,  teoria da literatura, história do Brasil e história gaúcha. Integrante da Academia Rio-Grandense de Letras. Presidente do Conselho Estadual de Cultura do Rio Grande do Sul 2001 – 2014. Patrono da Feira do Livro de Guaíba em 2000, e, em 2003, da 49ª Feira do Livro de Porto Alegre. Comendador da Ordem de Santos Dumont – Ministério da Aeronútica (1983), Sócio Benemérito da Associação Riograndense de Imprensa (1992), Prêmio Internacional Casa de Las Americas, em Cuba (primeira biografia de Pedro Álvares Cabral – livro Nau Capitania), Prêmio Erico Verissimo – conjunto da obra (2000), Cidadão Emérito de Porto Alegre (2000) e Medalha Pinto Bandeira, em Canoas (2019).

Fontes:
http://www.escritoresdosul.com.br/. Acesso em 8.11.2009
Imagem =Amanhecer em Alcafache (pintura em pastel s/cartolina) de Eduardo Soares Pereira Leitão

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