25 maio 2025

Rachel de Queiroz (O Amistoso)


Os visitantes ou adversários, convidados para aquela partida amistosa do chamado esporte bretão, chegaram festivamente num caminhão ornado de arcos e guirlandas. Sim, no começo tudo são flores. Flores e palmas, discursos, garrafas de cerveja, e os cartolas, que se distinguem dos demais presentes pelos bonitos ternos domingueiros, gravatas, chapéus de seda, como convém a legítimos paredros.

Não havendo no campo instalações de vestiário, os craques descem do carro já devidamente uniformizados — camisa de azul-turquesa, meias e chuteiras, sim, chuteiras regulamentares, que isso é jogo de fato e não pelada de moleques. Deficiências, se as há, é no campo propriamente dito, que seria ótimo se não sofresse de uma depressão bem no seu centro geométrico, exatamente onde se costuma riscar aquele grande círculo de giz. E como essa praça de esportes se situa numa baixada, sempre que chove apresenta o aspecto de um prato fundo cheio de água — e quando não é água é lama.

Naquele dia, felizmente, era apenas lama, e pouca. E sob os aplausos da assistência, tanto mais animada porque gratuita (ainda é um problema a resolver, esse da assistência em campo aberto, sem possibilidades de bilheteria). Juiz, jogadores, cartolas, reúnem-se um pouco de lado, pois que os paredros (dirigentes, líderes) estão de sapatos novos e aquela supracitada lama os assusta um pouco; faz-se o jogo, os visitantes pegam o lado sul que é o melhor, o presidente dos locais dá graciosamente o primeiro chute. Começou a partida!

1.° TEMPO

Xaveco, mulato, brevilíneo de canelas arqueadas, revela imediatamente a sua classe de grande artilheiro: tem fôlego, tem velocidade, tem cada tiro direito ou canhoto — tanto faz — que arranca aplausos frenéticos da torcida. Outra grande figura em campo é o goleiro dos visitantes. E o jogo vai indo muito bem, bola para lá e para cá, passe, cabeçada, chute a gol, gol — não, gol não, passou por cima da trave. O couro vai para Bira, Bira perde para um galalau amarelo dos “estrangeiros”, o galalau perde para Zico, Zico passa para Lucas, que perde para o capitão dos visitantes, um louro de gorro de meia. Aí Xaveco interfere na raça, toma a bola, o louro tranca, Xaveco dá-lhe uma carga, o louro acha ruim, revida, o juiz apita, os dois se agarram e por trás chega Bira, que é gordo e violento, e larga um pontapé no terço inferior da coluna vertebral do louro. Fecha-se o tempo, o juiz apita, a assistência pula a cerca e invade o campo, o pau começa a comer, mormente nas costas dos forasteiros, o juiz retira-se e se encosta à cerca, aguardando aparentemente que os ânimos serenem. Quem interfere são os paredros, austeros e educados, com as suas gravatas ao vento, chamam asperamente os craques à ordem, expulsam a assistência, interpelam o juiz, que relutantemente volta ao seu posto; aos poucos os craques se acomodam, o juiz apita, os paredros recolhem-se. O jogo recomeça.

Mas parece que o incidente estimulou os visitantes, que dão para jogar milhões. São uns húngaros. O time local perde terreno, o galalau passa a marcar Xaveco, que não dá mais uma dentro. E o diabo do louro tornou-se proprietário do balão, marca um gol de saída, depois o seu “secretário”, um crioulinho ligeiro que é uma faísca, marca o segundo tento; e aí Xaveco, desesperado (talvez dentro da área penal), atira uma canelada terrível no galalau, derruba-o, avança no crioulo, larga-lhe o salto da chuteira por cima do dedão, o crioulo grita, o louro acode, Xaveco já completamente louco lhe dá um tapa na cara, o juiz apita, uns gritam falta outros gritam pênalti, e um engraçado diz que foi só mãos, já que Xaveco apenas meteu a mão na lata do loureba.

O juiz continua apitando, parece que vai mesmo marcar o pênalti. E um torcedor local puxa o revólver, dizendo que aquele pênalti só se for passando por cima de algum cadáver. O juiz nessa altura se declara cheio com a partida e larga o apito ali mesmo. Um paredro fala que ele será expulso do quadro de árbitros e o juiz dá troco, que quadro de árbitros uma ova. Mas um dos bandeirinhas voluntários logo se apossa do apito, passa a dirigir o pessoal com surpreendente autoridade e, quando se vê, o jogo começa outra vez. Vai macio, vai de valsa, é um minueto, até que consultados os cronômetros verifica-se que acabou o primeiro tempo, passando-se ao recesso para em seguida dar início ao

2 ° TEMPO

que não houve, segundo passo a expor. Pois não vê que no Distrito havia uma queixa contra Bira — queixa dada por certa donzela que deixara de o ser por artes do craque. Bira escondera-se e só agora aparecia em público, atendendo a apelos da torcida, por tratar-se de amistoso importantíssimo. Mas a polícia, que não tem bandeira, aproveitara a ocasião e, antes que o réu pirasse, dava-lhe voz de “esteje preso”.

A assistência, entretanto, que de nada sabia, cuidou que a prisão se prendia à queixa dos visitantes por causa do pontapé de há pouco. E vendo Bira ser arrastado campo a fora, irrompeu num sururu dos diabos, vaiando as visitas com buus e nomes feios; as quais visitas, que tomavam Coca-Cola encostadas à cerca, vendo-se atingidas não só pelos doestos (provocações) como por pedaços de pau e tijolo, revidaram com as garrafas de refrigerante. O tempo fechou outra vez. Os polícias largaram o preso e se meteram no conflito. E quando os de fora começavam a apanhar feio, o motorista deles teve uma ideia: encostou o caminhão bem perto e tocou a buzina. A turma entendeu logo (ou quem sabe já era manobra habitual em “amistosos”?) e de um em um foram deslizando da briga e subindo para o carro. O que sei é que, quando os locais deram pela coisa, os inimigos já partiam numa nuvem de poeira, abandonando na pressa um dos seus paredros, malferido, com o sangue escorrendo do nariz e o belo terno roto.

Bira, igualmente, aproveitara a confusão para ir saindo de manso; agachado numa moita, lá em cima do morro, ficou a espiar o tintureiro chegar, encostar e, de um em um, recolher os remanescentes da refrega. E só saiu do esconderijo tarde fechada, quando no campo completamente deserto uma garça vinda do Jequiá sobrevoava o alagado, bicando restos das flores do buquê ofertado pelos visitantes.
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RACHEL DE QUEIROZ foi uma das mais importantes escritoras brasileiras do século XX. Pertencente à geração modernista de 1930, também trabalhou como jornalista e foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras. Nasceu em Fortaleza, Ceará, em 1910 e ali viveu até os cinco anos de idade. Mudou-se com a família para o Rio de Janeiro em virtude da terrível seca que assolou o Ceará em 1915. Em 1917, mudou-se para Belém/PA e, em 1919, retornou para o Ceará, onde fixou residência. Iniciou sua carreira jornalística escrevendo para o jornal O Ceará quando tinha apenas 17 anos. Aos 19 anos, começou a escrever, em segredo, o romance que a tornaria conhecida como escritora: O Quinze. Com a publicação do livro, em 1930, a autora tornou-se nacionalmente conhecida e ganhou o prêmio da Fundação Graça Aranha. Em 1964, integrou o Conselho Federal de Cultura e o Diretório Nacional da Arena, partido político de sustentação do regime militar. Além do prêmio da Fundação Graça Aranha, a escritora também ganhou diversos outros prêmios, como o Prêmio Jabuti de Literatura Infantil, em 1970, e o Prêmio Camões, a maior honraria dada a escritores de língua portuguesa, em 1993. Rachel de Queiroz faleceu em 2003, no Rio de Janeiro, aos 92 anos de idade. 
No começo de sua carreira, nos romances O Quinze (1930) e João Miguel (1932), a autora alinha-se a escritores como Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado, em uma escrita voltada para o regionalismo, denunciando a seca nordestina, a miséria, a desigualdade e indiferença dos poderosos diante da penúria do povo. Em 1937, escreveu Caminho de pedra, romance notadamente com inclinações políticas de esquerda, escrito enquanto a autora estava presa durante a ditatura de Vargas. No romance As três Marias (1939), a autora apresenta um estilo mais intimista, com uma narração voltada para o psicológico das personagens, tematizando a adolescência feminina. Além dos romances, a autora também escreveu peças de teatro, livros infantojuvenis e, principalmente, dedicou boa parte da vida escrevendo crônicas para jornais. Em 1992, Rachel de Queiroz publicou seu último romance, Memorial de Maria Moura, livro que conta a saga de uma cangaceira nordestina. Dois anos depois da publicação, a obra foi adaptada para uma série de televisão.

Fontes:
O Melhor da Crônica Brasileira. RJ: José Olympio, 2000.

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