Na margem esquerda do rio Sorocaba, pertinho da ponte Nova, ali nos Pinheiros, moravam nhô Madô e nhá Carlota. Ele, tropeiro velho e aposentado e ela, mãe de muitos filhos, dona de casa, boa cozinheira.
Nhô Madô, apesar de não mais trabalhar com tropa, não tinha parado com os costumes das tropeadas. Quase todo dia encilhava seu burro bem cedinho, atravessava a ponte Nova, e nhá Carlota ficava na janela espiando o velho montado no burrico, sumir por detrás dos grandes tambores da Alcoléa. No alforje levava alguma velharia que, atraísse algum compadre interessado em fazer alguma 'breganha'.
Pois é, a barganha é a herança que o tropeirismo legou a Sorocaba, basta ver que esse costume é mais evidente nas cidades da rota dos tropeiros.
Era breganhado com alguma coisa que, por sua vez, era breganhada com outra.
Nhô Madô era um “breganheiro incorrigível” . Tudo o que lhe caía nas mãos era breganhado com alguma coisa que, por sua. vez, era breganhada com outra.
Assim, passaram por suas mãos partidas de batata, sacos de arroz, cebola, relógios, bombardino, botas, gaiolas, com e sem passarinhos, etc...
Todas essas breganhas traziam uma alegria momentânea à nhá Carlota: era uma chaleira, uma vassoura caipira, uma ratoeira... Mas tudo tinha seu dia de chegada e seu dia de partida. Nada esquentava lugar... Até mesmo o gramofone, que animou baile de casamento de uma de suas filhas, teve sua despedida.
Nhá Carlota disse, então, ao nhô Madô, quando da 'transferência' do gramofone:
- Intão num vô vê mais a Patativa?
Indiferente, nha Madô levou o gramofone e os discos do Vicente Celestino, tudo em cima do Pingo.
Pingo era o nome do burrinho de estimação de nha Madô. Muitas coisas Nhô Madô tinha breganhado: muitos cavalos, muitas vacas, burros, mas a velha calçado tropeiro e o burrinho Pingo continuavam com ele, resistindo, até que porque Madô não era homem de voltar sem calças para calça. Além do mais, cada vez que saía, Madô ouvia de Nhá Carlota :
- Nhô! Pode breganhá o que quisé, menos o Pingo!
Nhá Carlota, afinal, tinha seus motivos. Pingo era um animal tão dócil que até ela conseguia atrelar o bichinho numa charretinha feita só para ele e, sem muitas dificuldades, ia até a Campos Sales buscar alfafa pras vaquinhas e, às vezes, até se aventurava em ir nos Rosas buscar milho para as galinhas.
Naquela manhã de inverno, nhô Madô, como de costume, tomou seu cafezinho na beira do fogão, apanhou uma pata botadeira e partiu, com o Pingo escorregando no barro, não sem antes ouvir, como sempre, de Nhá Carlota :
-O Pingo não!
E lá vai ela cumprir seus afazeres domésticos durante o dia todo. À tardinha quando o sol já começa a ser no horizonte, pintando o céu daquele avermelhado de todos os dias, nhá Carlota começa a demonstrar uma dosezinha de preocupação.
- Por que será que o véio tá demorando?...
Já de há muito não se sentia o cheirinho de feijão se espalhando pela casa. Nhá Carlota se dirige à cachoeira de onde pode ver as duas bandas do rio e nada...Nem sombra do Nhô!
Quase à noitinha, o sol se despedindo pra dar lugar à lua, aparece nhô Madô, com uma espingarda nas mãos, uma gaiola com um avinhado e a sela do burrico nas costas. Antes que Nhá Carlota possa fazer qualquer coisa, ele vai dizendo :
- É ...o Pingo já foi...
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ARMANDO OLIVEIRA LIMA nasceu em Sorocaba em 1934, funcionário público aposentado da Justiça do Trabalho. Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba, exerceu o magistério superior na Faculdade de Comunicação Social de Itapetininga (FKB) e na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Tatuí. Membro da Associação Sorocabana de Imprensa, foi um dos 14 membros efetivos fundadores da Academia Sorocabana de Letras e seu presidente no biênio 1993/1995. Coincidentemente, presidiu o Conselho Municipal de Cultura. Presidiu o Gabinete de Leitura Sorocabano (1979/1981), numa das mais dinâmicas gestões da centenária instituição cultural. Sempre foi colaborador assíduo da imprensa sorocabana e durante vários anos foi cronista do Jornal Diário de Sorocaba. Teve ativa participação no teatro amador sorocabano, como autor de várias peças, entre as quais “Espoletildo”, co-fundador do Teatro dos Três e presidente da Federação de Teatro Amador da Baixa Sorocabana (FETABAS). Fundador e coordenador da Elu (Editora Literatura Universal), Publicou o livro de poemas Pés no chão (Elu, 1973), os opúsculos Ave, Cristo (1982), Pesquisa escolar (OSE- 1982), Emília no mundo dos livros (OSE, 1982) e Impróprios culturais (Academia Sorocabana de Letras, 1997). Autor dos artigos “Escravidão na história e na literatura brasileira” (v. 9/1, 1983) e “Do espírito universitário” (v. 16/1, 1990), publicados na Revista de Estudos Universitários, da Uniso. Consultor do Núcleo de Cultura Afro-Brasileira, da Universidade de Sorocaba. Co-fundador da Academia Sorocabana de Música, foi por curto período, patrono por eleição direta do Centro Acadêmico da Faculdade de Filosofia de Sorocaba. Co-fundador do MUE – Movimento Universitário Espírita e da Revista “A Fagulha”. Nessa época foi difusor do espiritismo, proferindo palestras e escrevendo artigos sobre o tema. Recebeu da Câmara Municipal de Sorocaba o título de Cidadão Emérito.
Fontes:
http://sorocult.com/el/colunistas/arm/tv.htm
Pintura = http://www.klepsidra.net/. Acesso em 02.12.2008
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