22 junho 2025

Benedito Sampaio (O dia das mães)


Na sala de jantar. Ricardo lê. Na cadeira de balanço, Isaura tem entre os dedos um chocalho de celulóide, brinquedo barulhento do filhinho de Berta, a cozinheira do casal sem filhos. Berta vai por o almoço. A alvura da toalha já se estendeu, e está pronta para receber os pratos e os talheres. Lê Ricardo o jornal do dia. Ao voltar a página, surge aos olhos de Isaura em caracteres grandes este dístico: Dia das Mães!

Entristeceu-se a moça, e a manhã clara e alegre que ela bebia no campo da janela parece que também se entristeceu... E disse:

– "Dia das Mães, Ricardo! É hoje? Pois não é? Olhe, quando for à cidade, não se esqueça de comprar um presentinho para Berta, ouviu?"

– A criada, que estava já a dispor os talheres, estacou de repente:

– "Para mim, minha senhora? Mas eu sou mãe pobre..."

Continuou Isaura: "E um presentinho para o filhinho de Berta, para o Luisinho, mas que vá bem com os seus dois anos, ouviu?"

– "Ah, minha senhora, o Luisinho não precisa..."

E acabou de arranjar às pressas o resto dos talheres, para ir esconder na cozinha alguma coisa que já lhe estava a cair dos olhos... A patroazinha não desconfiou. Aquela pressa repentina também se explicava: correu para a cozinha, porque às vezes é preciso vigiar que o fogo não vá queimar o feijão...

Isaura deixou cair o chocalho inútil para ela e ficou a balbuciar: o Dia das Mães, o Dia das Mães... E mordeu os lábios, tentando fazer deste inocente movimento de boca um derivativo da tristeza que a queria sufocar. Tinha um nó na garganta, sentia uma dor no coração. O Dia das Mães!

Ricardo abaixou disfarçadamente o jornal, para observar o rosto da esposa, cuja voz balbuciada fazia adivinhar lágrimas escondidas. E os olhos de Isaura saíam pela janela, em busca do céu. Lá fora estava o céu azul. No céu, uma nuvem grande, muito branca, ia andando vagarosa, parece que ia muito cheia de si, muito vaidosa, muito feliz, e uma nuvenzinha muito branca e muito menina seguia atrás, nos seus passos inocentes de criança no céu... Lá se iam, lá se iam as duas, a nuvem mãe e a nuvem filha. O Dia das Mães! E Isaura chorou. Ricardo, mudo, veio para ela, beijou-a sem palavras, e foi ao jardim. Iria chorar também ou foi pedir sorrisos às rosas?

Isaura, ajuntando as pontas dos dedos, atirou-lhe três beijos cheios de lágrimas! E voltou de novo os olhos para o céu, para a nuvem mãe; depois desceu do azul do céu os olhos azuis, e fitou-os num medalhão que tinha diante de si, na parede cor de palha. Ali estava uma joia de Rafael: 'La Madonna della Seggiola!' A cabeça formosa da Madonna tocava, muito de leve, com divina suavidade, a cabecinha adorável do Menino; castidade e inocência ali se uniam num abraço celestial de amor! Isaura, com os olhos no Divino Amor, petrificou-se em êxtase de santa. E depois, como que cansada da amorosa contemplação, cerrou os olhos, tomada de sono e de sonho. E viu! E viu com os olhos fechados! E viu um bercinho de nuvem ao pé de si. E eis que o Menino se arranca da pintura, desce da parede, deita-se no bercinho de nuvem, e se põe a sorrir. No cantinho da boca do Menino dormido brilhava uma pérola: era uma gota de leite... e de leite de Isaura! E Isaura, de olhos fechados, no sonho, e no sono, sorriu... e acordou! E eis que foge o Menino para o medalhão, e o berço de nuvem se desfez. Mas Isaura continuou a sorrir. Foi mãe por um instante, mas um instante infinito, que não acaba mais!

Isaura, minha terna Isaura, continua a rir pela vida afora, porque tua maternidade se fez real nas ardências de teu desejo cheio de castidade e de amor! Tu, no teu desejo de ser mãe, és mãe mil vezes mais do que todas as mães que limitam o número de filhos para multiplicar os dias de diversão e as noites de festas frívolas! Isaura, amorosa Isaura, a tinta com que escrevo minhas crônicas é preta como o carvão, mas tu fizeste agora um milagre, porque me está caindo do bico da pena uma catarata de rosas numa sinfonia de cores! Apanha-as, minha Isaura, e põe-nas na tua cabeça, que hoje é o Dia das Mães! Ricardo! Ó Ricardo! Olá, Ricardo! Vem do jardim, vem depressa e traze rosas, traze o jardim para esta sala! E corre à cidade! E compra o presente do Luisinho, e traze o presente para Berta! Mas não te esqueças de tua Isaura. Traze-lhe uma boneca bonita, dessas que sabem dizer mamãe. Ouvindo-a, Isaura se lembrará do sonho, do divino sonho, e o Menino da Madonna descerá da parede, virá dormir no bercinho de nuvem, e dizer-lhe sorrindo: Sorria, Isaura, sorria, que hoje é o Dia das Mães!
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Benedito Sampaio nasceu em Igaratá/SP, em 1883. Estudou em Jacareí, e em São Paulo, no seminário episcopal. Foi professor, poeta e prosador. Em 1903, foi para Santa Rita do Passo Quatro, onde iniciou sua carreira de professor lecionando Latim, Francês e Português. Nesta mesma cidade casou-se com Noêmia Ribeiro.  Em 1910, foi para Bebedouro onde montou o Colégio Sampaio de cursos primários e secundários. Lecionou no Ginásio Estadual de Ribeirão Preto, quando escreveu e publicou seu primeiro livro de versos. Seu primeiro livro foi publicado em Campinas pela Casa Mascote e foi intitulado “O Hélicon”. Era um livro de versos. Em 1925 foi para Campinas e tornou-se docente de Língua portuguesa no colégio Culto à Ciência. Escreveu a maioria de seus livros nesta cidade, dentre eles: Taça vazia, Questões da língua, Falar certo, Polêmica alegre de Gramática, O Cosmorama da cidade (obra premiada pela Academia Brasileira de Letras), Leituras fáceis, Seleta de língua portuguesa, Tangolomango, Canto a três vozes. Em 1950, aposentou-se como professor de Língua portuguesa. Ele vivia em Pirassununga onde publicou em 1958 um volume de crônicas e fantasias denominado “De Minha Chácara”. Mesmo depois de aposentado e residindo em Campinas, novamente foi docente da Universidade Católica de Campinas, na Faculdade de Filosofia. Benedito Sampaio faleceu em 1965, em Campinas. Em 1975, foi criada pela Secretaria de Educação a Escola Estadual Professor Benedito Sampaio, em virtude da extinção do curso de primeiro grau do colégio Culto à Ciência.

Fontes:
Enviado por Arthur Thomaz, disponível no livro de Benedito Sampaio. “De Minha Chácara", publicado em 1958.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

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