Na sala de jantar. Ricardo lê. Na cadeira de balanço, Isaura tem entre os dedos um chocalho de celulóide, brinquedo barulhento do filhinho de Berta, a cozinheira do casal sem filhos. Berta vai por o almoço. A alvura da toalha já se estendeu, e está pronta para receber os pratos e os talheres. Lê Ricardo o jornal do dia. Ao voltar a página, surge aos olhos de Isaura em caracteres grandes este dístico: Dia das Mães!
Entristeceu-se a moça, e a manhã clara e alegre que ela bebia no campo da janela parece que também se entristeceu... E disse:
– "Dia das Mães, Ricardo! É hoje? Pois não é? Olhe, quando for à cidade, não se esqueça de comprar um presentinho para Berta, ouviu?"
– A criada, que estava já a dispor os talheres, estacou de repente:
– "Para mim, minha senhora? Mas eu sou mãe pobre..."
Continuou Isaura: "E um presentinho para o filhinho de Berta, para o Luisinho, mas que vá bem com os seus dois anos, ouviu?"
– "Ah, minha senhora, o Luisinho não precisa..."
E acabou de arranjar às pressas o resto dos talheres, para ir esconder na cozinha alguma coisa que já lhe estava a cair dos olhos... A patroazinha não desconfiou. Aquela pressa repentina também se explicava: correu para a cozinha, porque às vezes é preciso vigiar que o fogo não vá queimar o feijão...
Isaura deixou cair o chocalho inútil para ela e ficou a balbuciar: o Dia das Mães, o Dia das Mães... E mordeu os lábios, tentando fazer deste inocente movimento de boca um derivativo da tristeza que a queria sufocar. Tinha um nó na garganta, sentia uma dor no coração. O Dia das Mães!
Ricardo abaixou disfarçadamente o jornal, para observar o rosto da esposa, cuja voz balbuciada fazia adivinhar lágrimas escondidas. E os olhos de Isaura saíam pela janela, em busca do céu. Lá fora estava o céu azul. No céu, uma nuvem grande, muito branca, ia andando vagarosa, parece que ia muito cheia de si, muito vaidosa, muito feliz, e uma nuvenzinha muito branca e muito menina seguia atrás, nos seus passos inocentes de criança no céu... Lá se iam, lá se iam as duas, a nuvem mãe e a nuvem filha. O Dia das Mães! E Isaura chorou. Ricardo, mudo, veio para ela, beijou-a sem palavras, e foi ao jardim. Iria chorar também ou foi pedir sorrisos às rosas?
Isaura, ajuntando as pontas dos dedos, atirou-lhe três beijos cheios de lágrimas! E voltou de novo os olhos para o céu, para a nuvem mãe; depois desceu do azul do céu os olhos azuis, e fitou-os num medalhão que tinha diante de si, na parede cor de palha. Ali estava uma joia de Rafael: 'La Madonna della Seggiola!' A cabeça formosa da Madonna tocava, muito de leve, com divina suavidade, a cabecinha adorável do Menino; castidade e inocência ali se uniam num abraço celestial de amor! Isaura, com os olhos no Divino Amor, petrificou-se em êxtase de santa. E depois, como que cansada da amorosa contemplação, cerrou os olhos, tomada de sono e de sonho. E viu! E viu com os olhos fechados! E viu um bercinho de nuvem ao pé de si. E eis que o Menino se arranca da pintura, desce da parede, deita-se no bercinho de nuvem, e se põe a sorrir. No cantinho da boca do Menino dormido brilhava uma pérola: era uma gota de leite... e de leite de Isaura! E Isaura, de olhos fechados, no sonho, e no sono, sorriu... e acordou! E eis que foge o Menino para o medalhão, e o berço de nuvem se desfez. Mas Isaura continuou a sorrir. Foi mãe por um instante, mas um instante infinito, que não acaba mais!
Isaura, minha terna Isaura, continua a rir pela vida afora, porque tua maternidade se fez real nas ardências de teu desejo cheio de castidade e de amor! Tu, no teu desejo de ser mãe, és mãe mil vezes mais do que todas as mães que limitam o número de filhos para multiplicar os dias de diversão e as noites de festas frívolas! Isaura, amorosa Isaura, a tinta com que escrevo minhas crônicas é preta como o carvão, mas tu fizeste agora um milagre, porque me está caindo do bico da pena uma catarata de rosas numa sinfonia de cores! Apanha-as, minha Isaura, e põe-nas na tua cabeça, que hoje é o Dia das Mães! Ricardo! Ó Ricardo! Olá, Ricardo! Vem do jardim, vem depressa e traze rosas, traze o jardim para esta sala! E corre à cidade! E compra o presente do Luisinho, e traze o presente para Berta! Mas não te esqueças de tua Isaura. Traze-lhe uma boneca bonita, dessas que sabem dizer mamãe. Ouvindo-a, Isaura se lembrará do sonho, do divino sonho, e o Menino da Madonna descerá da parede, virá dormir no bercinho de nuvem, e dizer-lhe sorrindo: Sorria, Isaura, sorria, que hoje é o Dia das Mães!
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Benedito Sampaio nasceu em Igaratá/SP, em 1883. Estudou em Jacareí, e em São Paulo, no seminário episcopal. Foi professor, poeta e prosador. Em 1903, foi para Santa Rita do Passo Quatro, onde iniciou sua carreira de professor lecionando Latim, Francês e Português. Nesta mesma cidade casou-se com Noêmia Ribeiro. Em 1910, foi para Bebedouro onde montou o Colégio Sampaio de cursos primários e secundários. Lecionou no Ginásio Estadual de Ribeirão Preto, quando escreveu e publicou seu primeiro livro de versos. Seu primeiro livro foi publicado em Campinas pela Casa Mascote e foi intitulado “O Hélicon”. Era um livro de versos. Em 1925 foi para Campinas e tornou-se docente de Língua portuguesa no colégio Culto à Ciência. Escreveu a maioria de seus livros nesta cidade, dentre eles: Taça vazia, Questões da língua, Falar certo, Polêmica alegre de Gramática, O Cosmorama da cidade (obra premiada pela Academia Brasileira de Letras), Leituras fáceis, Seleta de língua portuguesa, Tangolomango, Canto a três vozes. Em 1950, aposentou-se como professor de Língua portuguesa. Ele vivia em Pirassununga onde publicou em 1958 um volume de crônicas e fantasias denominado “De Minha Chácara”. Mesmo depois de aposentado e residindo em Campinas, novamente foi docente da Universidade Católica de Campinas, na Faculdade de Filosofia. Benedito Sampaio faleceu em 1965, em Campinas. Em 1975, foi criada pela Secretaria de Educação a Escola Estadual Professor Benedito Sampaio, em virtude da extinção do curso de primeiro grau do colégio Culto à Ciência.
Fontes:
Enviado por Arthur Thomaz, disponível no livro de Benedito Sampaio. “De Minha Chácara", publicado em 1958.
Biografia = Blog Campinas, meu amor
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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